segunda-feira, abril 27, 2009

Quando ele não sabe falar

Ela sempre pensava com ela mesma o quanto seria medido o que ele sentia por ela. Sequer imaginava. Fosse lá em metros, gramas, gigas... Levantou devagar livrando-se do lençol branco como se fosse um creme caindo do corpo nu. Não haviam espelhos. Tascou uma mordida na maçã que havia na porta do frigobar. Não esquecia da linda noite. Ainda eram quatro e trinta e sete da manhã e ela dizendo que ele dormia fácil. Tomou uma ducha fervente, forte. Ao sair do banheiro havia um pedacinho do papel em cima da mesa, debaixo da carteira dele. Mas ele mesmo, dormia. E dizia:

Um dia eu enxerguei. Mas fazia tanto tempo que via. Foi ontem. É agora. Surgiu um sei lá, um quê de aurora. Não sei explicar. E, pra que o quê se vai querer entender? No meio de um inteiro vestido ela flertava comigo sem nem sentir. Ou sentindo mesmo. A dança das nossas vidas e nossas muitas musicas. Ontem foi um chopp de certezas. O meu pra sempre de hoje é com aquela mocinha de olhos verdes. Uma anja de pele quente e pêlos clarinhos. Ela não me dá sono. Me dá sonhos.

No dia seguinte ele foi para a casa dele e eu para a minha. Encantada, claro. Jantamos juntos como se fosse a primeira vez. Ele tinha o seu jeito engraçado naturalmente. Era carinhoso em certos silêncios. E eu fingi que nunca li nada. Tem horas que não precisam de palavras. Meu filme não precisa de texto, legenda. Ele diz sem saber falar. E eu amo.

segunda-feira, abril 20, 2009

O pobre mimado

Sou um homem doente. E nao estou imitando Dostoiévski. Só não afirmo que sou boa gente cheio de coisas a socializar. Sou do tipo caladão, introspectivo mesmo. Julgo até ter problemas do coração. Nao subo escadarias porque ele não aguenta. Não arrebento nos esportes olímpicos porque sou um pré-destinado à meu leito. E nem porque gosto de ser antipatico vou morrer. Vivo à amargura de usufruir da ausência de telas. Não enxergo televisores. Mas ouço os pingos do suor dos jovens. Sou um desinformado. Sou a antítese do anti-bom, do não-bem. Sou o antagonista do hoje. Sou um doente do coração que nada aguenta com esses pilantrinhas com probleminhas de cabeça de tanto que não suportam a carga de serem ricos, bem-sucedidos, muito fotografados, excessivamente elogiados, banhados de ninfetas cheirosas e de congratulações por serem especialistas do porra nenhuma. Tem como não adoecer, Adriano?

terça-feira, abril 14, 2009

Pintando uma espera

Quando decidiu ser pintor começou comprando telas límpidas com madeira de uma daquelas campanhas eco-responsáveis. Comprou um caderninho médio e começou a anotar os nomes que deveria ser fã. O primeiro da lista foi Salvador Dalí. Arrumou um modo de comprar pincéis de todos os tipos a preços um pouco menores. Ajeitou todo o quarto vendendo uma cama, comprando um tripé dos bons colocando-o no canto do quarto. Arrumou uma malinha onde pusera as novas capsulazinhas de tinta e os pincéis intocados. Certificou-se que dispusera de tudo que Portinari havia falado ser da personalidade de um pintor: o gosto pela arte, o olhar minucioso, os surtos de criatividade e solidão, a desapego ao que irão achar do que se faz e o medo de copiar e ser copiado. Sabia que era assim e mais um pouco. Conseguiu ir a uma exposição de Da Vinci, outra de Rembrandt e passou a fazer piada com Van Gogh. Conheceu pintores velhos e novos e velhos novos desconhecidos. Teve aulas com Dario Silva em Nova Iguaçu. Criou em si as próprias expectativas em silêncio. Batizou esponjas de amigas. Observava revistas em quadrinhos. Mas nunca havia pintado uma figura sequer. Preparava o terreno para o primeiro quadro.
A cerca de vinte minutos atrás meu irmão telefonou avisando que era dia de pintar. Conheci sua primeira obra depois de dez anos de preparação. E mandou avisar que não era a última tela. E gastou um pouco mais de trezentos reais nessa espera.

domingo, abril 12, 2009

Os dedos na memória

Fez cócegas no baço dela com a ponta do dedo mindinho da mão direita. Fechando os olhos peguei o mesmo dedo mindinho e dediquei à memória. Um dia a única coisa que lembrava foi de uma menina de olhos azuis, bem branquinha e calada. Era trote.
Abri os olhos e, no escuro, vi bem detalhada essa branquinha. A mesma que fez chorar esse homem com uma surpresa de aniversário. A mesma que me apoiou no país lá de cima. A mesma que topou casar comigo e descasar. Para virarmos namorados.
Fechei os olhos novamente. Dedo mindinho na memória. Corria o indicador pelo umbigo semi úmido. Foi quando sentamos naquele restaurante italiano. Foi quando fazíamos aviões voar. Foi quando começamos a fazer turismo.
Os outros dedos não citados ficaram enciumados. Juntaram-se aos enamorados das mãos dela. Lembra do Céu de Bianca? Levaram as mesmas mãos grudadas como no Pão de Açucar ao alto. Vimos o que era tão claro. Que é claro que fomos feitos um para o outro. Para quê ser um amor de uma história normal se o nosso original é mais gostoso?
Abri os olhos. Ela ainda está do meu lado na cama, apesar do tudo que fui. E dizendo que nunca é tarde.
Os outros dedos? Furando bolos, catando piolho e contando pro seu vizinho que a Espanha nos espera já que agora o mundo é pequenininho.
Com amor,

Thiago Kuerques