sábado, julho 24, 2010

Digo - Parte 2

Bobeira de adolescente. Contavam namorar desde aquele dia de chuva, da lepospirose e da repetência da quarta serie dele. "Não iriamos começar a namorar se nao fosse isso", dizia o rapaz. "Namorariamos de qualquer jeito", devolvia a menina. Mas, de tao criança somente os apelidos. Chamavam um ao outro de menininho e menininha. Chamavam aquilo de um e de outro de meninao e meninona.
Ela nao queria. Ele queria muito. Faziam todas as brincadeiras mas nao chegavam ao playground. Ela queria medicina e ele futebol. Ela escrevia poesias e ele nas revistas de video-game. Ela era baixinha. Ele magro. Ela esbelta. Ele alto. Ela tinha medo de altura. Ele do ferrao de abelha. Foram a praia duas vezes matando aula. Ela sonhava com Paris. Ele sonhava em conhecer o Ronaldo. Ela dançava É o Tchan! com amigas quando tinha 15 anos. Ele usava camisas de bandas de rock quando ainda existia a radio cidade.
Os pais da menina estavam de mudança pra Florianópolis. Os dele nao gostavam da revolta que ele fazia por querer ir junto. Fugiram em uma noite de chuva. Um dia antes da viagem de mudança ele se meteu a fazer uma casa da arvore no meio da floresta da Tijuca. Dormiam sem casa alguma. Levaram fandangos, coca-cola, mirabel e agua. Tomavam banho nus. Ela queria. Ele queria a mais tempo. Em dois dias foram achados. Assim mesmo ela foi pra Florianopolis. Ele foi pra casa mesmo. Em 5 meses ela voltou, sozinha e acompanhada. Cabisbaixa e mais mulher. Bateu à porta dele. Ele, Digo, mergulhou na rotina sem mesmo querer viver tanto. Mas vivia. Era pra ser assim. Sem razão. Ela enrolou os cachos com os dedos e o chamou pra perto. Mais perto, disse. Deitou o queixo no ombro esquerdo dele. Disse com voz veludada o que ninguém imaginava. - Menininho, estou esperando uma menina sua.

quinta-feira, julho 22, 2010

Digo

É só um menino. Só um menino magro e baixo. Fechava os olhos sentado naquele banco do colégio ao lado da segunda árvore atrás das salas de aula sempre que ela passava. Abaixava a cabeça e falava bem baixinho o quanto amava aquela menininha.
A menininha era da terceira série. O menininho da quarta. Ela media 3 centímetros a mais que ele. Ele achava um absurdo. Ficava pendurado no galho do cajueiro, comia em pé, vivia de pé. Isso pra crescer logo. Só fazia doer o pé. Ela branca de cabelos castanhos. Ele moreno dos cabelos pretos. Ela vivia enrolando-os pelos dedos. Ele vivia enrolando a merendeira no casaco. É pra ninguem ver que eu uso merendeira, dizia. Ela usava um arco amarelo que combinava com as paredes do colégio. Ele amarrava cadarço do tênis no tornozelo.
Criou coragem e escreveu no espelhinho que ela usava. Escreveu com canetinha azul. "Voce é o amor da minha vida. Namora e depois casa comigo? Ass.: Digo". Nas regras do amor está tudo errado. Nos limites da razão está tudo errado. De longe a menininha sorriu faltando um dente. De perto ele viu que faltavam dois. Ele pensava que se ela tinha perdido os dentes de leite, era sinal de que estava ficando pronta pra namorar. Estava criando juizo, dizia ele.
Chovia demais. Tinham de andar por volta de cinquenta metros ate em casa. A dela era a vinte passos dali. O menininho se atrapalhava enfiando a merendeira numa mochila grande. A menininha deixou cair o guarda-chuva duas vezes antes de sair de debaixo da marquise. Nao conseguia atravessar um metro de extensao de uma correnteza de agua da chuva e sujeiras mais. Digo sorriu. Ja estava ao lado dela e sabia que pelo jeito que ela o olhou, havia aceitado namorar e se casar com ele. Entao, como bom homem, tirou o casaco e pôs na cabeça da menininha. Pegou-a todo esforçado no colo e encarou a agua, a rua e o frio. Ela sorriu com timida satisfaçao. Deu um beijo na bochecha bem molhado e correu com guarda-chuva torto os dez metros que faltavam ate a porta de casa.
A menininha de cabelos cacheados e bochechas vermelhas passou os outros quatro dias procurando o menininho moreninho que a olhava entre os dedos que escondiam a cara muito mal disfarçada.
Digo ria-se de bobo. Dizia estar no ceu. Mas a internaçao por leptospirose está longe de ser algo dos céus. A mae que nao se ria muito. Acabara por perder o ano. Teria que fazer a quarta serie denovo. Mas faria apaixonado.

sexta-feira, julho 09, 2010

Cartão de Embarque

O raio de sol ofuscou os óculos escuros, batendo enviezado entre o rosto e a lente preta. Mesmo assim respondeu ao asceno. Passou a carteira da mão direita para a esquerda e levantou o braço. Deu tchau também e viu um sorriso contido nela. Aliás, caríssimos, quem era ela? A memória não funcionava. Nenhuma gaveta escondida na cabeça continha uma pasta com uma foto 3X4 daquele rosto.
Quando livrou-se do sol viu que realmente nunca havia visto a mulher. Mas era branca, cabelos ligeiramente anelados, castanhos, vivos e um par de olhos amendoados e maiores que os dele, que eram puxados feito lã antes do tricô.
Carecia de covardia. Era corajoso demais. Não deixou de desafiar a mulher. Insuava mesmo. Não como leão atrás do filé. Parecia a criança fugindo da chuva.
- Topa um suco de uva? - arriscou.
A pergunta surgiu depois de trinta e quatro segundos de deslocamento de onde ele estava até a porta da sala de embarque do Aeroporto Internacional de Manaus. Ela carregava uma bolsa preta de couro fino de tamanho médio, entreaberta, dependurada ao ombro esquerdo, amarrotando a blusa bem levemente insinuando que ela havia acabado de mexer na bolsa e de tão recente não arrumou-se para entrar na sala. Ele deduziu que o embarque ainda esperaria por ela. Talvez uns vinte minutos mais.
- Uma coca-cola? Seu embarque não começou ainda. - insistiu.
- Aceito. Mas a coca-cola cai melhor nesse calor, não? - respondeu a mulher.
Em mais dez segundos até a lanchonete do lugar ele reparou na falta de aliança, nos pés de número 34 ou 35, na cicatriz de dois centímetros abaixo do queixo, na calça um pouco justa e no comprimento da blusa xadrez que indicava que naquele calor uma mulher escondendo a barriga é sinal de insegurança com o próprio corpo. Talvez tivesse o corpo mais bonito que ele já viu mas a mulher devia ter lá suas crises.
- Sou carioca.
- Sou do interior de São Paulo.
- Sou rubro-negro, adoro samba, futebol, churrasco, mapas, músicas antigas, turismo, cidades serranas, promoção de passagem aérea e piadas sem graça alguma.
- Sou corinthiana. O resto eu gosto tanto quanto. Terei filhos, um marido moreno, sou viciada em carinho e gosto muito de sexo, sou protetora, me divirto sozinha e sonho que o turismo será mais que promissor.
- Dizem que sou conselheiro e divertido.
- Dizem que sou amiga e engraçada.
- Dá no mesmo, né?
- É, dá.
E o assunto pouco importava. Ele continuava estudando todos os cantos dela. O perfume era de preço mediano. Ele achava que mulher digna era aquela que nem era tão futil pra gastar mares de dinheiro com essas coisas e nem aquela que nada gastava com isso. Tinha de ser equilibrada. Ela parecia.
- Gosto de ser moreno. É uma cor equilibrada. Entre o negro e o branco.
- Gosto de ser timidamente simpatica. É um equilíbrio entre a euforia e o silêncio.Entreolharam-se no calor do Amazonas. Ela parecia se perguntar quem era ele. Ele, claro, nem queria se perguntar quem era ela.
- Nossa, perdi o meu vôo.
- Talvez eu tenha perdido o meu também. Mas acho que ganhei o dia.
Tudo em volta ficou ferozmente congelado. Batiam com facilidade a casa dos 45ºC graus.
- Com certeza eu não te conheço. - afirmou ela.
- Confundi um asceno.
- Não fez mal. Eu confundiria. Mas, só estava ajeitando a blusa.
- Não precisa justificar. Te dou todo o tempo do mundo pra me deixar em dúvida.