quarta-feira, agosto 13, 2014

CONTO DO RIO PÉRFIDO - CAPÍTULO IV

Deu de cara com gigantescas estruturas de concreto. Ou melhor, pedra-sabão.  Era para ter amanhecido não fosse a neblina voltando a perturbar os ares da cidade como se estivesse em no meio do meio da Amazônia. Logo decretou: Cristo! José Patrício deu de cara com a cabeça do Cristo Redentor meio enterrado entre árvores, separado do restante da estátua. O cenário estava totalmente macabro. O rapaz não reagiu. Desaforou o que via e seguiu a descida pela encosta.

A televisão mostrava ao vivo o tempo branco. As câmeras não pegavam nada além de dois metros de distância. O fato obrigava cada repórter de cada transmissão utilizar a sua criatividade de falar sobre o invisível, dissertar sobre o nada. O fato era histórico. As fontes, não. Não havia informações. Em seus estúdios, debatedores e especialistas criavam a cobertura branca na imprensa marrom. Um fabricante de colorantes chegou a ser entrevistado.
Nas ruas de quase toda a cidade extremistas atacavam os alarmistas. Radicais atacavam os equilibrados. A guerra iniciou e já não era mais santa. Recortes do que era discutido em meio a violência indicavam que uns agiam a mando do todo poderoso, outros se intitulavam serem o próprio, clonado em cada esquina e sem certificação. Outros estavam revoltosos com todo o radicalismo e também respondiam. Exércitos do bem fazendo o mal. Cidadãos comuns defendiam a própria vida e de seus familiares. Bandidos aproveitaram a situação para efetuarem saques em instituições. Casas foram invadidas. A morte era real. Por sobrevivência inocentes fugiam para os locais mais altos: prédios, favelas e florestas. Ironicamente o Corcovado era um lugar seguro.

- Eu não quero saber daquele velho.
José Patrício conversava sozinho. Reclamava sozinho. Um macaco-prego e dois sabiás ouviam atentamente. Talvez pensasse que reclamava com a própria incoerência. Não sabia para qual lado haveria alguém ou alguma trilha para saída. Mal sabia que o sopé da floresta estava bem distante. Estava exausto e com um ferimento cada vez mais doloroso no joelho esquerdo. Bebia a água das poças do chão. Chegou a mastigar algumas folhas de araribá e pau-pereira. A alucinação causada pelas dores e pela fome era tanta que por vezes via alguém vindo e sua direção bem distante no meio da imensidão acinzentada. Arregalou os olhos. O corpo inteiro ficou paralisado. Duas horas depois não era apenas uma alucinação.
- Moleque!
Bem ao fundo Morialdo surgiu arrastado por uma força inacreditável. O velho sobreviveu. E José Patrício não tinha sequer dignidade de inventar algo para falar. Não haveria desculpa ou perdão. O próprio ouvia ecoar nos ouvidos a própria voz dizendo “Eu não vivi nada. Você já viveu tudo”. O juizado final de alguém com dezoito anos. Como se sabe, depois dos vinte e tantos anos nada é tão final assim.
- Ô Moleque. O que você fez foi muito errado.
O velho falava e suor frio descia pelas costas do rapaz. Não há vergonha maior que o crime cobrado pelo exato vitimado. Frente a frente. Cara a cara. Sem rodeios ou personagens. Ao moleque não era permitido rodear.
- Perdão. Por favor!
- Não corra mais por aí. Eu poderia ser seu avô. Agora, de pé. Apresente-se. Como se chama?

O velho contou que deu uma leve cochilada. Mal sabia onde estava e como havia parado ali. Imaginava ter sido algo muito improvável. Não notava as feridas pelo corpo. O que sangrava ele ignorava. O que doía ele chamava de besteira. Todo mundo pratica a falsa displicência. Morialdo resmungou:

- Ainda diz que já vivi de tudo...

quarta-feira, agosto 06, 2014

CONTO DO RIO PÉRFIDO - CAPÍTULO III


Todos ainda comentavam sobre o Cristo Redentor e sua rendição ao pé do Corcovado. A cidade inteira tomada por uma neblina praticamente serrana. Se não bastasse o contexto ninguém teria realmente deixado passar despercebido, sobretudo os cariocas, a previsão do tempo para este dia. Principalmente, uma previsão certeira. Não apenas começou a chover. Ao cair da tarde já começava o chuvisco. Lá pelas tantas da noite já alagava a cidade inteira. Poças e correntezas pelas bandas da baixada fluminense e a tomada de pessoas que antes ignoravam sua existência. Rios e riachos pelos lados do Humaitá, pelos cantos da Rua das Laranjeiras, pelos meios do Alto da Boa Vista. Dentro da gruta já se formava um grande aquário onde os únicos animais eram os dois homens que já não se entendiam.
- Esse velho aqui não deve aguentar.
E Morialdo seguia falante. Cada vez mais necessitado de um diálogo para preencher o silêncio e o medo. Cada vez mais cheio de conteúdos. Citou até Nietzsche.
- Qual seu nome, rapaz?
O velho seguia suas perguntas. Essa deveria ser a pergunta de número cento e quatorze. Isso considerando somente as sobre o nome do moleque que já não respondia e até implorava para o Deus – que ele dizia não acreditar – acabar com aquele mau agouro todo.
- Você está chateado comigo? Não te conheço.
José Patrício considerava Morialdo um companheiro de cela irritante. A paciência com o esquecimento do velho havia acabado lá pelo meio da tarde. Morialdo considerava José Patrício um novo neto a cada momento que o conhecia pela primeira vez, um possível ajudante arremessado pro seu lado, um braço forte que ele já não tinha. De um lado a suposição de esperança. De outro lado a sugestão de um peso.

Quarenta e dois anos antes José Morialdo implicava consigo mesmo. Pegava sempre um papel para espirrar ou tossir e acabava escrevendo. Não dançava o rock. Não ouvia rádios. Não ia para lanchonetes. Sequer lia clássicos. Sequer ia aos cinemas. Era apenas trabalhar e escrever. A redação do jornal o considerava fanático. Não gostava. Considerava-se lunático. Santa diferença. Os amigos diziam que pelo menos suas crônicas eram boas, muito boas. Não era possível toda vez sonhar e ter que escrever. Dormia um papel em branco, acordava assustado todo rabiscado em consciência, de ponta a ponta. Todas as noites. Todos os sonos. Não era possível. Considerava coisa de doença.
- Escrever é uma maldição.
- Uai. É troça?
- Escrever dói. A cabeça nunca fica vazia. Escrevo para despachar os pensamentos e parece que cada vez mais atolam, acumulam. Escrevo mais. Escrevo mais e mais. E mais.
- Reclama de barriga cheia. Aliás, de cabeça cheia. Acaso queria ser vazio? Pelo menos assim sustenta sua família, seus filhos e netos. Trabalha esse trem por eles então.
O amigo do sotaque de um canto de Minas estava mais que certo. Morialdo sabia e mirava as forças na família que crescia. Seus filhos ainda crianças dariam netos e bisnetos. Sonhava que pelo menos o mais velho fosse jogador ou médico. Ou médico de jogador.
- Melhor eu ir.
Despediu-se do mineiro. No meio da noite acordou assustado ao lado da esposa. Não quis acordá-la. Iluminou o papel com seu candeeiro de mesa e começou a escrever. Não sabia ainda se comédia ou tragédia. Era no Rio de Janeiro de mais adiante.

Muitos moradores das zonas sul, norte e centro perpetuavam a estadia em hotéis e motéis da Baixada Fluminense. Chovia mais pra perto do mar que lá pra perto do pedágio da Dutra. A ironia era as empregadas hospedarem suas patroas. Com o tempo até poderiam usar as patroas de empregadas e as empregadas de patroas. Assim como os pedreiros com seus patrões, os motoristas com seus chefes e as secretárias com suas gerentes. A Baixada é a nova Zona Sul e a Zona Sul é a velha Baixada. Nesse quesito o velho e o novo fogem dos seus sentidos. O velho e o novo. O antigo e o contemporâneo. Morialdo e José Patrício.
- Quer saber de uma coisa? Eu detesto velhos. Todos os velhos. Inclusive você. No ônibus cheio tenho que levantar pra dar lugar pra velho. Vou ao banco e minha fila demora muito porque tem atendimento especial pra velho. Vou ao supermercado e acontece a mesma coisa. Velhos são problemas. Prefiro morrer cedo a ficar velho. Que você não aguente mesmo.
Uma dos lados da gruta arrebentou com a força da água. Sobravam alguns metros ainda sem estarem submersos. Ambos em cima de uma rocha de uns cinco metros de superfície. O nível da água subia com considerável velocidade. Para frente e para os lados um lago escuro onde horas antes só havia gruta. Para trás uma parede por onde escorria água.
- Faz alguma coisa, velho.
- Se está escorrendo água por essa parede imagino que exista um buraco. Uma entrada de água. Uma saída pra nós.
Com a cabeça fez que concordou com o senhor. Certamente a contragosto. A parede cedeu lentamente e ofereceu uma saída com uma correnteza mais forte. Um buraco de um metro de diâmetro a cerca de cinco do nível onde estava. Uma correnteza cada vez mais forte. Folhas, galhos e muita terra também entravam na gruta por este local.
O combinado foi o moleque subir nas costas do velho e, estando lá em cima, ajudar a puxar o velho para fora. O nível da água já cobria até a metade do corpo deles e subia cada vez mais rapidamente. O velho agachou levemente pressionando as costas contra a rocha abaixo da pequena cratera aberta pra saída. José Patrício subiu pisando sobre o joelho e depois no ombro de Morialdo. Esticou o que pôde e não conseguiu alcançar um modo de subir ainda mais. O nível da água estava quase no pescoço do velho.
Mais um pouco e, enfim, conseguiu agarrar os dedos em um galho sustentado por algo do lado de fora. Subiu um pouco. O velho já estava com a água acima da cabeça. Insistia em pôr o rosto mais para fora da água. Pedia ajuda. Implorava para que José Patrício o puxasse. Passava por sua cabeça que não conseguiria se salvar se insistisse em puxar o velho.
- Velho?
- Me ajuda.
- Acha que já viveu de tudo nessa vida?
- Me puxa! Me puxa! Puxa!
- Responde!
- Acho que muito. Não tudo.
- Me desculpa. Eu não vivi nada. Você já viveu tudo. Não consigo te puxar.
- Não me deixa aqui! Não me deixa aqui! Não!
O moleque tentou uma única vez. Deixou a mão de Morialdo escorregar, virou-se sem resquícios de hesitação e saiu da gruta. Sem peso algum. José Patrício sabia que o velho havia ficado sem chances.


A tempestade não dava trégua na Guanabara. O papel molhou com uma lágrima.

CONTO DO RIO PÉRFIDO - CAPÍTULO II


A queda se deu lá pelas treze horas de terça-feira, 29 de Julho. O Cristo Redentor teria tombado para frente, beijando todo o maciço do Corcovado em direção ao Humaitá, com sede de água do mar, como que se estivesse com uma absurda vontade de saltar do caos de um trem Japeri lotado, de um metrô da linha dois entupido. Mas o Redentor não frequenta a linha dois do metrô, tampouco o ramal Japeri. O fato é que ele teria mergulhado ou apenas tentado esconder o rosto. O pescador franzino da boca da Barra que comentava lá pelas bandas dele. Ele realmente não viu, mas acredita-se que foi exatamente assim. Não viu assim como quase todo mundo. A notícia da queda transpôs outra notícia igualmente preocupante: entre os fins de julho e o início de agosto de 2014, logo após a Copa, em uma ressaca descomunal a cidade do Rio de Janeiro passa os dias e as noites tomada de um forte nevoeiro. Nada se vê na Guanabara.

Os pensamentos começaram a decantar no meio de um quase breu. O menino localizava-se mais no tempo e do que no espaço. Talvez ajudasse a entender onde estavam. Mas não sabiam da tal queda que o mundo inteiro deliciava por debater. Um sadismo midiático. Um repórter chegou a lamentar não poder entrevistar a estátua.
- Cristo Redentor! – exclamou Jose Patrício.
- Qual seu nome?
- Que saco, velho! Que saco!
Irritou-se com a repetição. Soltou um grito e palavrões aos montes. Tudo isso de costas e em direção a uma grande parede de pedras. Tudo isso até esgotar o excesso de raiva. José Patrício é do tipo que guarda mágoas possivelmente por anos. Ou as mágoas dele são do tipo que o guardam por anos. Respirou fundo, virou-se. O velho já se apressava em dizer que eles deveriam sair dali. Apressou-se também em perguntar o nome do garoto.
- Estou irritado com o senhor, não vê?
- Vejo. Mas não sei o motivo. Vai se irritar sozinho ou quer dividir comigo? Pelo que eu me recordo não fiz nada a você. Acabo de te ver aí olhando pra parede, rapaz. Até achei coisa nova de adolescente. Sei lá. Só vim te perguntar onde estamos e onde está Jorginho. Você conhece o Jorginho? Ele é magro, alto, cabelos grisalhos, tem uma mancha no braço esquerdo, tem também...
- Qual o nome do senhor mesmo?
- Morialdo. José Morialdo.
- Seu Morialdo, sente alguma dor? Algum machucado?
O velho nada sentia. Nenhum arranhão. Nenhuma avaria. Lataria intacta como se estivesse ainda em 1973. Não fossem os cabelos brancos ninguém chamaria de velho. Aliás, a modernidade retrógrada da adolescência não permite que não se chame um grisalho de velho. Mas, pera lá, um jovem com feridas espalhadas pelo corpo e um velho sem lesões? José Patrício não quis alongar e foi prático.
- Vamos procurar uma saída.

Imaginava-se o prefeito Eduardo Paes lançando desculpas ou justificativas em diversos meios de comunicação. Imaginava-se o mesmo do governador Sérgio Cabral. Esse Rio de Janeiro da atualidade é pérfido. Não era como no caso das vigas da perimetral que haviam sumido misteriosamente e que poderiam ser ignoradas até que a estação climática mudasse e cada carioca esquecesse. E olhe que alguns não esqueceram, felizmente. O Cristo Redentor não era visto mais lá no topo do Corcovado. Nenhum governante apareceu. O corretor imobiliário caiu no choro por não poder mais vender aquele conjugado na Glória com vista lateral da vista parcial para o Cristo já imparcial. A mulher amargurada que trabalhava como acompanhante de uma idosa em Copacabana pediu um milagre, uma graça divina, algum sinal para que pudesse acreditar que Deus existe. . Recebeu um aumento de salário. Chamou de milagre o que a patroa chamou de dissídio. Um homem passou gritando pelas ruas vazias que “A natureza está revoltada. Um tigre atacou um menino no Paraná! O Cristo Redentor tomba no Rio! É o apocalipse! É o fim dos tempos!”. A tropa de elite assumiu sem qualquer cerimônia as funções dos bombeiros e embrenharam-se na floresta. O que começa errado talvez termine errado. O que começa absurdamente torto termina pior ainda.

- Me diz uma coisa, moleque. Acredita em Deus?
- Sou ateu.
- Ateu daqueles que praticam? Olha lá. Não minta para mim.
- Não estou mentindo. Ateu de ateu mesmo.
Enrugou a testa desenhando interrogações no ar. Nem quis insistir muito. Descansavam da tentativa da retirada de umas pedras que se ofereciam como possível rota de saída. Através delas que alguns feixes de luz arrebentavam dentro da gruta. Nenhuma novidade.
- E o senhor, acredita em Deus?
- Há dúvida neste ateu! – e sorriu.
- Não. Só quero saber.
- Minhas maiores desilusões e meus maiores desamores foram todos envolvidos por religião. A partir daí acreditei em Deus. Ainda está em tempo.
- Não vou mudar.
- Quando seu calo apertar e sua mente não aguentar você irá gritar alguns palavrões e pedirá por Deus. Não sei se exatamente nesta ordem.
O menino não quis dar-se por vencido. E na falta de argumentos à altura – é sabido que a disputa sempre será desigual – atacou de qualquer forma o alvo da vez.
- Duvido muito.
- Se quiser que te agrade eu te digo uma coisa que penso de Deus e se sorrir é porque acredita nEle. Se não reagir é porque está convicto do seu ateísmo.
- Vamos lá. Manda ver.
- Deus é sádico. Ele gosta de nos ver sofrer. Caso contrário, ofereceríamos prazeres e não sofrimentos. As promessas são subidas de joelho em enormes escadarias, exaustão de orações e tantas outras coisas. Ninguém promete um recital de poesia ou uma suave canção para Deus.
O moleque tentou congelar as reações. Por fim sorriu.
- Vi um sorriso. Não se preocupe. Eu também menti. Essa teoria não é minha. É do Rubem Alves.


O nevoeiro persiste. Nada se vê na Guanabara.