quarta-feira, dezembro 30, 2009

Ainda Lembro

Se um dia eu perder a memória não saberei que fui um bom homem; falhado na superfície; alaranjado na essência; romântico por natureza; um quê de feliz tristeza;
Se um dia eu perder a memória não lembrarei que já conheci grandes pessoas; que tive grandes amigos; que mesmo esses amigos que se afastam naturalmente um pouquinho sempre estarão em cena; que já fui apaixonado perdidamente e sem medo;
Desmemoriado, não ia saber que já fui pra Argentina, Paraguai, Paraná, São Paulo, Minas Gerais e Estados Unidos; e que já morei em Mesquita, Nilópolis e Nova Iguaçu; que já entrei em três faculdades; que já ganhei dois concursos de poesia e que eu já produzi grandes obras literárias de seis leitores ofegantes;
Não saberia dizer o que é Flamengo; pipoca; lasanha; futebol; chocolate; beija-flor; vinicius do morais; cachoeira; natação; fernando pessoa;
Não teria o prazer de lembrar que tenho irmão, mãe, pai, irmã, mães, namorada, amigas e amigos absurdamente companheiros;
Se um dia eu perder a memória não saberei que fui isso tudo e mais um pouco, contando piada sem-graça, aconselhando até quem nunca vi, dando apoio e, cada vez mais precisando ser apoiado na mais corajosa aventura que me meti, que é viver.
Mas ainda lembro disso tudo, não se preocupe.

sábado, dezembro 26, 2009

Dia Internacional da Troca

No dia internacional da troca tem casal realizando o desejo erótico reprimido. Tem gente que nem sequer fica no empate, quer trocar de parceiro definitivamente.Tem gente trocando a dama pelo cavalo, vê se pode. Tem gente trocando um montão por trocado. Tem gente que tem trocado uma de 40 por duas de 20.
Trocaram tiros, trocaram farpas, trocaram passes, trocaram biscoitos, trocaram o uniforme no final do jogo, trocaram sal por açucar no café e na pipoca, distraído. Trocaram de carro anteontem; trocaram de casa ano passado; trocaram de mesa; trocaram a comida fria e limpa pela comida quente e cuspida. Bem feito.
Pois tem gente que troca globo por record; que troca a micareta por um só; que troca Paquetá por Marajó. Tem gente trocando o doze anos por leite; o MC por DJ; o DJ por VJ; e o VJ por qualquer modelo mesmo. Tem gente então que troca modelo por gordinha; a rúcula por coxinha;Ana Hickman por baixinha; a paz por faxina.
Já trocaram o Papai Noel pelas camisas brancas de reveillon; o São Paulo pelo Flamengo no coração; o sapato pelo chinelo novo; o jazz pelo carnaval; a primavera pelo verão; o assado pelo cozido; só não trocaram ainda meu nome porque a numerologia não permitiu. Trocaram as bolas do meu bilhar; as asas da minha imaginação; trocaram o beijo pelo aperto de mão. Trocaram de lado os inimigos; trocaram de laços os amigos; amigos que trocaram abraços por beijos. Tem gente que já trocou o lado de cá por inverso; trocou o prédio pelo brejo; a Avenida 25 de Março pelo interior do Espírito Santo.
Tem gente que troca os pés pelas mãos; os "sims" pelos "nãos"; mas o talvez impera. No dia internacional da troca dos presentes que não serviram no dia 24 a noitinha, eu não to querendo trocar nem olhares. Porque os meus presentes sempre são sob medida. Meu último presente foi você.

segunda-feira, dezembro 21, 2009

Prioridade e opção

No que ela pede:
- Eu precisava ouvir sua voz. Só você me traz calmaria nas horas que preciso.

[...]

- É que precisava de conforto. Estou passando por uns problemas e queria te ouvir. Sei que você me ouve.

[...]

- Estou passando por um processo de perda. Muito triste. Você é o único que me faz sorrir.

[...]

No que ele responde:
- Nos momentos bons irá me procurar algum dia?

segunda-feira, dezembro 14, 2009

A Nova

Eu desisto. Desisto da compreensão. Desisto de manter a pose diante dos dias que nascem. Não vou chorar. Só não vou cantar. Desisto da vida ao menos por hoje. Porque brilhei tanto e ninguém nem nada sequer acudiu a cabeça, levantou a face e me olhou. Vivo de admiração. E nem nas fotos eu posso sair. Ninguém me captura. Ninguém mais me oferece de prêmio, de prova de amor. O último visitante já deve até ter morrido. Passaram-se, sei lá, uns quarenta anos. Não sou lá uma jovem. Não tenho mais paciência, tempo a perder e a menopausa é o mais ardente dos companheiros. Por tanto me ignorarem eu desisto. Pelo menos hoje. Pelo menos nesse mês. Peço um tempo. Um tempo para pensar. Um tempo para me ver.

quarta-feira, dezembro 02, 2009

A Derrubada

Corria bastante para impedir a vossa loucura. Ela não podia pular. Mesmo que tivesse o líquido mais macio do mundo, mesmo que tivesse uma viva alma disposta a agarrá-la no ar, mesmo que boborletas ninjas transpusessem seu corpo um planar de pouso suave, nem que a tosse da vaca, um espirro alto, a pusesse no chão bem devagarzinho. Nada de saltos para o nada. Corri derrubando tudo ao caminho. Não gritei para não assustá-la. Raciocínio frio, eu sei. Tenho dessas crises de sapiência em momentos de adrenalina. Sou o avesso do avesso do nada certinho. Todo atabalhoado, derrubei carrinho de pipoca, pipoqueiro, algodão doce, moço bicudo, moça fazendo biquinho, maçã do pé, e pé do anão. O violão do corpo dela inclinava-se para fora, os pés já apontavam os dedos para fora do vão da ponte. O processo de queda começava. Agarrei-a pelo colarinho com a mão esquerda. Minha tendinite gritou. Meu amor voltou. Caiu em cima de mim, dobrei os braços e pernas, arranhei as costas, e o dedo mindinho direito quebrou. Saía sangue demais. Mas o beijo que ela me deu vermelhou por dentro. Esquece o sangue. Esquece o dedo. Esqueci toda a dor. To vivo, muito vivo aliás, apesar da carne morta.