quinta-feira, janeiro 28, 2010

Conto do violão surrado - Fim

Pegava as revistas de cifras dos amigos fracassados. Pegava, por ora, as revistas dos filhos dos amigos fracassados. A primeira que aprendeu foi Faz Parte do Meu Show, do Cazuza. Ele queria mesmo era testar o sexo dela com ar de professor. Dois meses depois compunha versos para ela. Aline, por sua vez, nunca perguntou o que ele queria realmente ter dito naquela noite e já namorava com o não mais estranho. Ela contava as peripécias de romântico do namorado. Ele, com amor guardado, mirava na promessa de ser músico dos melhores. Começou a tocar em bares. Quando se via ficando melhor. Mudou-se para São Paulo. Acometeu do fervor da noite paulistana. Ganhava notoriedade. Enquanto ela não se importava tanto com os dois anos sem notícias dele. Estourava na novela das oito da Globo uma balada de um cantor novo. Enquanto isso, a música tocava ao fundo do restaurante quando o estranho a pediu em casamento. Ela aceitava o anel. Ele assinava contrato. Ela queria entrar de branco na igreja onde a avó se casara, em Friburgo, no Norte Fluminense. Ele beijava por aí mas não se envolvia. Ela ficou grávida depois de envolvida na cama de casal. Ele gravou a mais bonita de suas músicas dedicada a uma criança. Quando Aline contava de sua gravidez para o futuro marido tocava exatamente essa música no rádio do carro. Quando a criança morreu, com dois meses de uma doença rara, ele fazia show de abertura do Sting na praia de Copacabana.
Num dos palcos da vida, depois de anos de sucesso - e anos de sucesso, no Brasil, podem ser dias ou meses - ela apareceu no gargarejo. Queria dizer o quanto gostava das suas músicas e o quanto era estranho ele parecer uma espécie de compositor da trilha sonora da vida dela. No meio do show ela reparou que ele a reconhecera. Gritou silenciosamente um "Eu te amo". Mas foi um "Eu te amo" de amigo. Ele só cantou. E cantou sorridente. Não sabia o que ela falava. As luzes não permitiam leitura labial. Olhou com ternura para o violão preto, surrado, cuja marca ninguém nem mais sabe o nome e sorriu vitorioso. Agora poderia viver tranquilamente os acordes de uma canção independente. Cumpriu sua missão. Sabia que tinha feito muito bem a trilha sonora da vida de Aline.

quarta-feira, janeiro 20, 2010

Conto do violão surrado - Parte I

O dindin dondon daquele violão preto, surrado, cuja marca ninguém nem mais sabe o nome era antigo. O moleque já fazia das suas por ali aos quatorze anos. Mesma época que morava na quarta rua à direita depois da praça da Mirandela, em Nilópolis. E mesma época que estudava no Colégio Nilopolitano, apaixonando-se por cada risadinha de menina diferente. Apaixonado, diga-se de passagem, só para ele e com ele. Nada de declarações. Aline era sua melhor amiga, vizinha e companheira de sapecas histórias. Aos dezesseis anos beijou a primeira menina enquanto Aline começava um namoro com um menino mais velho. Aos dezessete ele quis votar para presidente, perdeu a virgindade com uma colega e ganhou o primeiro campeonato de xadrez. Aline também perdeu a virgindade e começou a levar mais a sério o sonho de ser cantora. Aos vinte ele já havia se mudado para Jacarepaguá e ela, pra rua de trás. Ela estava noiva do segundo namorado. Ele noivo da sétima namorada. Ela pintou os cabelos de preto (e era ruiva natural). Ele já havia mudado de emprego seis vezes, comprou e vendeu dois carros e tirou pedras nos rins. Ela tomava remédios para diabetes, tão nova.
Aos vinte e três se cruzaram. Ela contou das novidades. Ele lembrou da época que eram felizes. Ela concordou. Não eram felizes. Beberam taças de vinho. Ela começou a tocar violão no bar onde estavam, em Campo Grande, bairro do Rio. Estavam no mesmo fim de mundo: recém-separados. Ela por ter sido traída. Ele por ter traído. Enquanto ela embaralhava suavemente canções de Ana Carolina, Belchior, Caetano, Ivan Lins, Ivete Sangalo, Lulu Santos, Jovelina Pérola Negra e Pixinguinha, o moleque crescido a amava. Amava como fazia com as meninas no colégio, mas amava como um graduado na faculdade adulta. Nao amou ali. Resgatou uma verdade. Sempre amou.
E, no intervalo, ele resmungou no meio da imensidão de barulhos que descobrira o que os ligava tanto. Descobriu o invisível teimoso que unia os dois. Descobriu o amor. "Não te ouço. Mas depois você me conta. Eu tenho que saber o que ele - dizia apontando para o rapaz branco e forte do outro lado do salão - quer comigo". "Mas, ele? Quem é?". "Não sei. Vou saber agora. Fui". "Mas eu... te amo".
Em pouco mais de quinze minutos eles se beijaram. Eles, meu amigo leitor, o estranho e Aline. E, quando voltavam, ele dirigia o carro Palio 97 e ela contava do novo. "Ele é músico".
Decidiu, então, retomar o dindin dondon do violão preto dos seus quatorze anos só para ser o músico da vida dela. A partir de agora seria assim.

domingo, janeiro 17, 2010

Sem vida

Rodei tanto o mundo que nem sabia aonde exatamente estava acordando naquele dia. Pelo menos dormia sozinho, o que era especial. Ninguém no quarto. A ultima era bamba, do samba cubano. A penultima, bomba, de sangue ismâmico. Nem bomba nem bamba. Olhei pela janela e havia paz. Paz com solidez, temperatura baixa e queda brusca do céu. Era neve. Mesmo assim desci os dois jogos de escada, esnobei a friaca e invadi o primeiro bar. Era um Pub americano. Pedi um café gelado.
Consenti à memória o direito de ter folga naquele dia. Não consetia aos ouvidos não escutar as conversas ao redor. Haviam duas mulheres meio masculinizadas, maltratadas mesmo, num ponto atrás de mim, que já estava sentado ao balcão. O inglês era falado meio mastigado, bem maltratado mesmo. Mas entendia algumas coisas. Das piores era quando uma delas se dizia infeliz com tudo e que não acreditava em felicidade. Além delas, um casal feioso no outro canto brincava de serem infantis, uns bêbados jogavam bilhar, outros cinco vidrados na tela da reprise do jogo final do ano retrasado. Na outra tv o noticiario nos lançava o terremoto no Haiti. Ninguém ligava. Os que viam comentavam de justiça. Justificavam a indiferença por terem conhecido haitianos mal educados por varias vezes.
Um tremor foi sentido. Algumas taças foram lançadas ao léu. Espalharam cacos de vidro pelo chão. Nove segundos após minha visão tremia absurdamente. Não tinha equilibrio. Depois disso era como se eu tivesse apagado.
A primeira pessoa a me acordar foi um enfermeiro de meia idade. Não, de idade inteira. Completamente vivo. Só me informou que eu havia bebido demais. Só isso. E que eu havia entrado em coma alcoólico. E que meu princípio de úlcera (que eu desconhecia) havia evoluído muito bem. Evoluiu para uma úlcera de ultima geração, bem encorpada e prontinha para acabar comigo. Preferia o tremor. É o meu Haiti por doses homeopáticas. Voltei ao Pub uma semana depois. Escombros. Só escombros e uma placa que dizia "Without life".

domingo, janeiro 10, 2010

Sou movido a combustível

Não sou um parque de diversões no qual os outros podem chegar até sem ingresso, aproveitar, se divertir e até me divertir e, mais a noitinha, partir.
Não sou nenhum martelo pra ser usado para bater nos outros e, machucado, ser deixado na gaveta.
Não sou nenhuma praia que o povo pode vir e encher de alegria ironica durante um dia de sol e mais pro final da noite me abandonar. Se eu fosse uma Copacabana, uma praia de menina praiana. Mas não sou.
Não sou nada de nada de uma borracha da cabeça de uma lapezeira que todo mundo tem mas não usa para não gastar e deixar de enfeite.
Não sou nenhuma rede pendurada na varanda da casa de veraneio que qualquer um pode descansar antes e depois da farra e nos tempos longe das férias ser abandonada.
Não sou um pé do par dos patins que só são lembrados na hora da faxina.
Não sou um dia 31 de dezembro que só é lembrado porque o ano termina. Só por isso.
Assim como os carros são movidos a combustível, sou movido por amor. Necessito amar para poder viver.