domingo, dezembro 26, 2010

Rodolfo deixou de ser homem

Quase três da manhã e Rodolfo empurrava o carro garagem acima. Não queria fazer barulho. Não mais do que a cabeça fazia. Entrou em casa sorrateiro. Foi ao quarto dos filhos que dormiam em paz. Uma paz invejável. As crianças são invejáveis. Só não mais que os jovens. Parecia que havia música e tudo. Atravessou o corredor com a cera verde inalando aquele aroma de novo, sinal de faxina recente. Entrou no próprio quarto e viu a esposa seminua, linda com o babydoll rosa claro. Caiu em choro silencioso. E os pensamentos perfurando a cabeça feito facas afiadas. Aos poucos o choro virou grito. E começou a falar sozinho. Bradava pra si mesmo como ele era babaca, prepotente, fracassado e infiel. "Viu que filhos maravilhosos você tem? Olha aí que esposa linda e especial você tem. Vai continuar com essa vida? Vai continuar traindo? Essa menina que você deixou em Mesquita vale tanto como essa mulher deitada na cama te esperando? Uma mãe dedicada, fiel. Viu o que você faz?" - dizia Rodolfo.
A chuva fina fazia alguns sons distantes do lado de fora. Misturava a agua do céu com a água dos olhos. Sentou no chão e meteu, literamente, os pés pelas mãos. A luz acendeu. A voz embargada e pausada falava sobre decepção. A esposa não estava dormindo e ouviu tudo. Pediu pra que ele contasse tudo com os detalhes. Perguntava quando foi cada mulher, de onde eram e ligava com as desculpas dadas como futebol às terças-feiras, sinuca às quintas e hora-extra às segundas. Ela escutou tudo. Foi posto para fora da casa e da vida. Daí em diante viu a esposa com outro homem, possivelmente melhor que ele. Deixou de trabalhar algumas vezes. Foi demitido. A carreira enfraqueceu. Diminiu de vida. Envolveu-se com mulheres e mulheres. Casou-se mais três vezes e praticava os mesmos erros. Se era fiel, era péssimo homem. Impaciente, turrão, ciumento. Se não, ausente, crítico demais, machista. Não acharia a esposa em nenhuma delas. E não achou.
A vida de Nelson Rodrigues era interessante por escrito. A face mais suja do homem e da família mostrada por Nelson faz sucesso na literatura, na televisão. Rodolfo escrevia passagens da sua vida para ver se o peso diminuía. O peso não diminuiu. Nao foi sucesso algum e, anônimo até pra si mesmo, deixou de ser conquistador, trabalhdor, pai e homem. Deixou, senhores, de ser homem.

terça-feira, dezembro 21, 2010

Os motivos de Tim

Tim Maia viveu em estado grave. E o mais grave nele era a voz. Pedia pra aumentar o retorno, por primavera, até por eu e você, você e eu. E nem nos conhecíamos. Só que o mais marcante foi quando ele pediu que o desse motivos mesmo que fosse pra ir embora. Não me dê motivos pra ir embora. Não quero ver a hora de te perder. Também não quero saber de jogos. Se o jogo foi limpo ou se foi sujo, quero mais é jogar. E jogar a partir de agora.
O mais grave é o motivo. Não quero nunca - e se já fiz isso um dia, não quero nunca mais - pedir que me dê motivos para ir embora, para sair, fugir, para o não. O não, senhores, com esse til aí não me convence. Disconfio de homens sempre gentis, de mulheres sem tpm, de cachorros que não latem, de dias nublados, de bolinho de bacalhau com bacalhau demais e de palavras com til. Se o til vem em cima do a seguido da letra o, é batata: fácil demais de rimar. Então não (olha ele aí) quero motivos assim.
Meus motivos - e que os peço com tanta selvageria - são vários. Um motivo pra continuar. Não pra parar. Motivo pra pescar minguado; pra banho de chuva gelado; pra brincar de mimica todo desengonçado; ficar com o corpo todo malhado; jurar que pra dizer que te amo eu nunca fiquei calado. Um motivo pra aumentar, pra subir, pra rir da cara do Almodóvar e não chorar junto, cair mais, diminuir ainda mais.
Foi aí que Sebastião riu das nossas caras. Sebastião - verdadeiro nome de Tim Maia - parecia cantar triste. Era até melódico. Mas, peço que ouça novamente essa canção. Ele conversa contigo no meio da música, rindo, ignorando o drama. Foi ele quem me fez te olhar e pedir motivos.
Me dê motivos pra não ir embora, estou vendo a hora de te ter. Sou teu amigo, vai ser agora. Podes crer, nunca estará tudo a perder. E por ai vai. Os meus motivos podem ser vários para ficar triste. Nem minha barriga me respeita mais e cresce desordenada. Só que, senhores, podem existir milhões de motivos para não ser feliz mas se tem um pra sorrir, me dê ainda mais motivos. Se tem uma chuva de voz grave eu sou Tim Maia chutando a vaidade da tristeza e rindo contigo, bebendo contigo e sendo tão feliz quanto você me faz. Mas isso acho que é Elymar Santos. E é outra história mais brega ainda.

sábado, dezembro 18, 2010

O Homem de Lata - Fim

Passaram-se três minutos. O sol baixou um pouco. Mas só um pouco mesmo. Talvez uma nuvem querendo assistir a próxima cena. Ou uma nuvem ciumenta já que falei tanto do sol por aqui. Enfim, senhores, passaram-se três minutos e, agora, onze segundos até que ele retornou.
- Eu ouvi seus pensamentos altos. Eu era um príncipe e virei lata. Podia ter sardinha dentro de mim e feder pra caramba; podia ser daquelas latas infelizes dos momentos mais felizes amarradas em cordas atrás de um Mercedes rumo às núpcias de alguém; podia ser uma lata diabética com açúcar mascabo, enjoado com achocolatado ou qualquer troço amargo. Podia ter sido transformado em lataria de Camaro antigo, em peças de ferro velho, em medalha sem valor nenhum; em latinha de refrigerante bem comum. Já até saimos de moda. Tudo passou a ser em lata nos anos 90 - enlatados americanos, lembra? - e agora a moda é o plástico. Camarada, eu poderia ter sido qualquer coisa mas tive a sorte de ser Homem, apesar de ser de lata.
- E eu - continuou - sofri com acasos de ser lata, mesmo que homem. Não sei como mas saqueadores descobriram que eu guardava coisas valiosas dentro de mim. Mal sabiam que o que é valioso pra um pode não ser valioso para outro. Trancaram meus braços e me enfiaram um abridor de latas na altura da barriga. Tiraram meus livros e cartas que eu levava comigo. Me reviraram por dentro e, indignados pela falta de artigos de valor, prenderam-me a uma árvore ainda aberto e se foram.
- Mesmo assim queria ser lata para não ter um coração - eu disse.
- Não sabe o que diz. Acompanhe o resto da história: em três semanas de sol e chuva eu realmente "bati lata". Os pombos desamarraram as cordas e trouxeram de bicada em bicada óleo muito provavelmente de algum vazamento de algum carro velho que havia estacionado pela estrada. O mal dos homens é o tempo que os envelhece e os tornam gagás. O mal das latas é o tempo que as tornam aderentes e enferrujadas. Você só quer ser lata porque não sabe os males do ferrugem.

Ambos pararam de falar. Pensaram. No que o Homem de Lata continuou:

- Não é porque te magoaram um coração que você deve deixar de dar coração pra alguém. Não é porque deu errado uma vez que dará errado sempre. Nem todas as latas são enferrujadas como nem todos os homens são cafajestes e nem todas as mulheres fazem um homem sofrer.
- Pois então concordo. Te escrevo um conto, até dois.
- Eu fico muito agradecido. Muito obrigado... de coração.

segunda-feira, dezembro 13, 2010

O homem de lata

L. Frank Baum no início do século XX criou uma lenda de uma menina dos sapatos de prata, um mágico mentiroso, leão sem coragem, espantalho sem cérebro e um outro cara lá. Esse cara de lá foi o que fez barulho quando eu já acordava para não fazer nada, num dia de São Nada de tardezinha. Pedia ajuda. Eram umas três da tarde e o sol testava a resistência dos meninos que corriam atrás de uma bola ali na praça. Fui apertar a mão do homem e me queimei. Era lata. E era lata quente.
A primeira coisa que o homem pediu foi outra lata. Achei irônico. Mas era lacônico. Nada de café, chá ou água. Queria uma latinha de óleo. Já lubrificado e ludibriado o homem disse a que veio. Contou que ouvira falar bem dos meus conselhos. O desacreditei mas ouvi com afinco o que ele teria de ruim na vida. O homem enlatado foi sutil e óbvio:
- Eu quero um coração.
Eu não sou mágico como no conto original e não sei dar um coração. Nem sou médico para transplantá-lo um coração.
- Homem de lata, como posso te ajudar?
- Voce escreve. Me dá um coração. Acho que sou uma boa história.
Eu olhei por três vezes, mudei a direção dos olhos para o chão. Perdi em pensamentos. Perdi as contas de quantas vezes nada veio. Afinal, vos lembro que era dia de São Nada. Até que...
- Porque um coração? Porque não um cachorro, um livro, um reduto de óleo ou a própria paz? Porque um coração?
- Porque eu quero ter sentimentos como os que você descreve.
- Desculpe, não posso ajudá-lo.
O homem de lata não insistiu. Nada contra as latas. Nada contra os homens. O homem de lata só quer um coração porque não sabe o que uma mulher é capaz de fazer com ele.

quinta-feira, dezembro 09, 2010

Os médicos também choram

Diziam que ele teria uma filha. Ele queria dois meninos. E os queria espertos e rubro-negros. Que gostassem de praia e da noite e de carros e de sinuca. Brincava. Sabia que teria uma menina. Nos registros do destino constava no parágrafo décimo nono que ele teria uma filha e choraria por dois motivos e ao mesmo tempo.
Elias conheceu Roberto num churrasco com os amigos. Roberto conhecia Catarina que conhecia Amanda que era irmã de Josias que era companheiro de trabalho de Linda. Em uma festa de reveillon Elias convidou Roberto que já namorava Catarina que, por sua vez, chamou os irmãos e os amigos. Na terceira queima de fogos Linda já brindava com Elias. Perde a graça se eu apenas citar como tudo foi? Poderia dizer que trocaram telefones, encontraram-se em outras duas oportunidades em festas com amigos, em uma semana estavam com os lábios grudados numa sala de cinema, em dois meses planejavam o próximo ano e em quatro meses planejavam a lua de mel. Mas eu direi que em oito meses moravam juntos. Ele de Áries e ela de Mesquita. Sonhavam com o Rock In Rio e com uma casa de praia. Contentaram-se com um conjugado na Glória. Pelo menos por enquanto. O conjugado era pequeno e o amor era enorme.
Ao receber a notícia Elias chorou. E quando terminou a notícia Elias chorou mais. Passaram-se sete meses do dia que ele quebrou a mesa muito sem querer pra comemorar a gravidez da esposa. Linda ficava cada vez mais bonita. Combinavam que o nome seria Arthur se menino ou Elizabeth se menina. Meu caros leitores, deveria ser menina. Deveria ser.
Linda perguntou ao médico se Elias estava calmo. Perguntou se eles dariam bons pais. O médico respondeu que sim, apreensivo. A pressão arterial aumentou assustadoramente. Houve convulsão. O cirurgião fez teste com a urina dela. Foi notada a presença de proteína na urina. A maioria dos médicos não choram. Este chorou. Enfermeiros choraram. O nome é eclampsia. Linda, em coma, sobreviveria se Elizabeth morresse. Era dezembro, dia 29. O Rio de Janeiro não lembrava nem de longe a alcunha de cidade maravilhosa. Perguntavam nas comunidades da internet onde estava o sol. Nem a maré na praia do leme começou a subir lás pras dezoito horas. Os pescadores achavam o dia meio estranho. Os taxistas, gaiatos, pareciam calados demais. Nem parecia verão. Anunciava um temporal. E continuava o 29 de dezembro. Elias tinha apenas 19 anos.
Pediu por sol, pediu por fogos no Reveillon e no amanhecer do novo ano pediu por ela. Pediu pela vida gritando de frente pro mar de copacabana, com lágrimas escorrendo até o queixo. Pediu um sinal. Uma folha seca em forma de coração bateu com o vento no peito de Elias. Consultou os mesmos registros do destino e começou a acreditar em anjos.

segunda-feira, dezembro 06, 2010

Segundo Camões, a língua dos anjos

E veio com a ponta dos dedos tocando minhas costas. Eu precisava. E era das melhores. Enquanto uns e outros cismam que massagear é apertar eu não diria que boas palavras massageiam a alma, certo? Errado. Até violência massageia a alma. Inferno gostoso. Dor prazerosa. E as pontas dos dedos mesmo assim faziam circular o sangue, diminuia a tensão dos ombros, aumentava o tesão entre as pernas. Nos viramos e a massagem que era da ponta dos dedos foi para a boca. E ninguém diria que um não sabia o nome do outro. Os lábios dela beijavam a curva do musculo da minha coxa. Os dedos corriam atrás dos meus joelhos, subindo. E eu ainda tive a cara de pau de dizer que eram cócegas. Não vou esquentar mais o assunto porque o Rio de Janeiro já ferve demais e eu, meus amigos, não quero ser responsável por incêndios em bairros nobres da cidade como o das recadatas da Pavuna, dos reclusos da Penha, da sonhadora de Anchieta e do ruim de bola de Jacarepaguá.
Hoje chamam de "vibe" a onda boa que vem do lado de dentro da cama. Eu chamo de romantismo, curtição, sei lá. Sei que é bom. O efeito, dizem os especialistas, é como o de uma droga. Eu sou altamente dependente, confesso. Só que essa droga era protagonista e antagonista ao mesmo tempo. Era o controverso dotado de chuva que não inunda, sujeira que não imunda. Não é machismo meu querer ser forte e rei. E não seria ousadia dela querer ser altiva e rainha. Eu a fazia rainha do meu reino, sempre. Fazia mas confesso meus defeitos. Só que ela não me fazia ser me tronar como rei. A coroa da moeda era cara. O coroa era novo demais. A coroa não tinha ouro, tinha espinhos nada afiados que desafiavam o que eu queria: você, ela, no caso.
Eu corria e ela andava. Eu chorava e ela se ria. Eu cantava e ela ignorava. Mas nada com vontade de desagrado. Era dela. Era ela. Só que, se sou dois ou três centímetros mais alto ela queria me diminuir. Não era por mal, eu até sei. Mas não era por bem. Eu falava sem concordância e ela gargalhava. Eu comia sem classe e ela adorava. Ela não gostava de rir. Gostava de ser superior. Detestava meu jeito caipira mas era apaixonada pela minha sinceridade e até sabedoria de interior. Até que o moço, bom sujeito não deve ser, cantou e encantou. Eu brigava. Não sou possessivo, sou ciumento. E ela passou a querer requeijão ao invés da minha mão; passou a querer noite na boate ao invés de passeio de caiaque; passou a querer cinco cavalheiros ao invés do meu saveiro. E ela era da pós-graduação, dos filmes de alemão, de ler Veredas do Sertão e de comer comida japonesa com a mão. Sei não. Parecia maior que eu. E não eram centímetros. Mas eu sabia amar. Ela teve que escolher entre a Avenida Paulista ou a viela Passa Quatro.
De que adianta falar tantos idiomas se não consegue falar a mais bela das línguas? De que adianta falar inglês, alemão, sueco, polonês e mandarim se a língua dos anjos, segundo Camões, ou a língua do amor ela não sabe falar? Me responda, um dia, com a ponta dos dedos.

terça-feira, novembro 23, 2010

Na falta de inimigos

Preparou o café da manhã com ovos, pães, queijos e iogurtes. Não estava feliz. Queria estar. Não estava. Se fez parecer, se fez querer e permitiu-se. Sorriso tão gostoso que ao abrir a janela do quarto o dia nublado deixou o sol sair tímido assim mesmo. Chegou com sol próprio no quarto, fez claridade. Acordou o esposo.

- Saia daqui. Não quero acordar cedo. E não to com fome.

No dia seguinte, tentou um almoço especial. Nova negativa.

Três dias depois mais uma vez. Os dias já já estavam nublados, os arrastões nas vias do Rio, as promoções de fim de ano nas vitrines dos shoppings. Um ingresso para o jogo do Fluminense, o quase campeão. Ficou bravo.

A partir daí, silêncio total. E mesmo assim o homem brigava. Se havia almoço, reclamava. Se não havia, esperneava.

Até o porteiro se surpreendeu quando saíram juntos. Foram a um encontro com amigos. Na primeira conversa sobre asneiras do mundo, o casal discordou em ponto de vista. Ele irritou-se e brigaram. A noite da rotina voltou.

Ela combinou consigo mesma três chances. A primeira, foi clara e honesta. Abriu o jogo. Ele ignorou. A segunda chance foi tentar entendê-lo. Escreveu uma carta. Passaram-se três dias e ele não leu. A terceira foi a insinuação. Insinuou-se com o corpo, com a linjerie e com o ciúme. Escreveu de batom na parade do quarto.

- Na falta de inimigos, não brigue comigo.

Já era tarde demais. Um homem perde a paciência toda hora. Uma mulher sempre perde a paciência mais definitivamente.

Correu a esperar o ignorante sair. Ele foi ao bar e encontrou os amigos. Dez minutos depois saiu com apenas um. Esse um parecia ter uns quinze anos. Pararam em uma farmácia. Ela corria pelas sombras. Chorava por dentro. Pegaram um táxi. Ela chamou um rapidamente. O bairro da Penha acompanhava do alto das suas vilas e cruzeiros. Baixaram numa casa pequena. Ela esperou dentro do táxi. Em mais três minutos saíram com um Ford Fiesta cinza. Ela pediu para segui-los. Entraram em um motel. Ela abriu a porta do carro e, completamente acabada, danou a chorar. Fez cara de cebola. Enquanto o marido entrara com um homem num motel os passantes não se cansavam de chamá-la de deliciosa.

E era um desperdício. Pelo menos até aquele dia.

sábado, novembro 20, 2010

Juventude literalmente transviada

Quem vai do quente pro frio morre de choque térmico. Se vai do breu pra claridade, cego temporário fica. Emenda um namoro no outro, insucesso. Vai do ódio pro carinho, falsidade. Vai do Rio de Janeiro para Nova Orleans, teletransporte. E eu falo dessas mudanças rápidas, sem pensar, sem movimento. Os olhos nem piscam. A retina mal retém. Nada entretem.
Bem me lembro dos filmes de ficção científica. Da gravidade zero para um ambiente de gravidade normal era preciso passar por uma câmara intermediária. No submarino, amarelo ou não, do fundo do mar para o interior do equipamento era preciso uma câmara intermediária para que os mergulhadores passassem para que a água nao invadisse tudo e para que a pressão se mantivesse nivelada. Para quase tudo precisamos de uma área de transferência, um cômodo de transfusão, uma sala de espera.
Por mudanças tão bruscas eu tenho medo. Das duas, uma. Ou eu dormi no ponto de ônibus e não reparei os indícios do que estava por vir ou é pra ser assim mesmo numa mudança repentina e assustadora.
Eu confesso que não vi a hora que trocaram Lula por Dilma, a nova esperança. Ela que era andróide feia e passou a ser "mãe" simpática. Não vi a hora que passou a ser normal mulheres beijarem mulheres; homens de roupas coloridas e muito mais sensíveis que as meninas; ter quinze anos e escrever biografia; crianças de cinco anos sendo apresentadoras de TV; heróis do rock nacional se parecendo com o padeiro do bairro; olimpíada ser no Brasil; Estados Unidos jogando bem futebol; as notícias mais importantes do mundo saindo de um microblog; ser famoso sendo requisito básico para ser postulante a qualquer cargo político; É o Tchan, Cia do Pagode, Beto Barbosa, Grupo Molejo e tantos outros tornando-se clássicos;
De todas a que mais me impressiona é a moda jovem de ser livre. Jovem sempre foi rebelde. E abusado. Abusaram da rebeldia. Transformaram a juventude transviada em juventude viada. O que querem, ninguém sabe. É como a tão batida comédia de situação. O rapaz está parado, pensativo. Chega uma mulher de tirar o fôlego e o convida bem selvagem pra irem pro motel. O cara, assustado, pergunta se não tem como ela pelo menos pagar o café, conversarem algo, fazer um carinho antes da violência sexual. É, meu amigo, são os novos tempos para os velhos de vinte e poucos anos de uma juventude literalmente transviada.

quinta-feira, novembro 04, 2010

Céu bastardo do Méier

Detestava perder o controle. Não só da TV mas do DVD, do computador e até de mim mesmo. Bebia da forma que chamam hoje em dia de socialmente. O que, pra mim, é beber passarinhando, dando bicadinha pra não morrer de sede. Não sou de dar bicadinha. Eu bebo pra valer, como pra valer, faço pra valer. Com controle, claro. Eu e Quitéria havíamos brigado. Foi semelhante à falta não intencional. Dei carrinho no jogador sem querer. No futebol tropecei e dei uma pernada na perna do cara. Em casa saí deixando um recado num pedaço de papel avisando que ia pro futebol.
A crônica, meus amigos, é cruel. Foi Nelson Rodrigues que fez a brisa derrubar da mesinha de centro o bilhete que deixei. Quitéria, como boa espécie de mulher teimosa e intolerante, quis dar o troco pra quem só tinha dinheiro inteiro. Ligou para duas amigas e resolveu sair sem avisar. Bar do Espuma. É lá que ferve e borbulham os anjos nada pecadores do céu bastardo do Méier. Eu sei disso porque sempre foi lá que ela quis ir e não tinha oportunidade. Tomei duas doses e meia de Whisky, um trago de um cigarro vagabundo e à varejo do bar da esquina, pus os documentos no bolso direito da calça, arrumei o penúltimo botão da blusa, o perfume CK e, aí sim, fui.
Os homens nunca estão preparados para enfrentar seus penhascos. Uns são mais assustadores quando vistos de perto. O Bar do Espuma era ali pra perto do Engenho de Dentro, mais pra lá da Abolição. Não pensei que caberia tanta gente. E eu acharia Quitéria. Dançava com as amigas. Demorei uns três minutos até encontrá-la. Outros dois minutos até conseguir me aproximar tamanha a muvuca. Nesses dois minutos um homem chegou ao ouvido dela. Em dez minutos estávamos à porta do meu fiat Uno preto. Fazia tempo que não fazíamos em um estacionamento. Sei que os meus leitores famintos e famigerados bem sabem o que fizemos no estacionamento. Dali era ir pra qualquer outro lugar. A areia da praia à noite é como gelo seco e inofensivo. Por lá que pararíamos.

O policial queria o teste do bafômetro. Minhas duas doses eram percebidas a três kilômetros de distância. Com o aparelho na minha mão ela me interrompeu. Quis dar um beijo logo naquela hora. Depois do beijo susurrou que era pra dar sorte. Antes do beijo fez aquela cara de pecadora que me faz perder o sentido. No meio do beijo movimentou a língua tanto que me fez perceber o lance. Fiz o teste. Nenhum álcool percebido. Bafômetro zerado mesmo depois de tantas doses. O policial nos liberou e saímos. Demos mais um beijo e, aí sim, devolvi o melhor beijo dos últimos tempos com a bala de Halls da cor preta que ela havia me passado no beijo da sorte. A bala anulou o efeito do que já bebi. Linha Amarela estava descolorida, Avenida Ayrton Senna desacelerada e por aí vai, ou foi. A areia gelada de Grumari foi testemunha do crime que foi ter amanhecido depois de uma longa noite.

Eu não sou fofo

Primeiro,
Não sou gordo, nem gordinho.
Sou sarado como o Faustão
Nem tenho dois ou três anos de idade
Como o fofinho do filho
Da prima do seu irmão.

Segundo,
Não sou de amorzinhos
Nem de cartas, nem de flores.
Recebo cartas para pagar contas
E das rosas vermelhas
Uso as pétalas sem pudores.

E, por fim
Fofo é o trouxa
É a bochecha do menino
O bobo do teu marido
O corno do teu inofensivo
Melhor amigo.

Não sou fofo
Só gosto de vestir
essa fantasia primeiro.
Pra depois tirá-la
Peça por peça
Porque fofo safado, dizem,
É bom à beça!

terça-feira, novembro 02, 2010

Luizinha e o menino falador

Eu era quietinha. Me preparava muito para responder a chamada na sala de aula. Tossia o "presente" depois de ouvir meu nome. Luiza Maria. Já depois era quase uma sinfonia. O Miguel era popular. E eu só uma menininha. Miguel era falador e eu pequenininha.

- A luizinha parece espinha na ponta do nariz. Prefiro minha bola de futebol.

Subi a estradinha de terra ainda meio úmida depois da última chuva feito um raio. Não queria chorar pra ninguém. Fui pro espelho ver se eu tinha alguma espinha. Juro que não tinha.

- Mãe, ele disse que pareço uma espinha. E as espinhas são muito feias.

No dia seguinte, realmente apareceu a dita. Dei um grito de assustar. A mãe achou que eu tinha me machucado, caido da cama, torcido o pé. Antes fosse. Tinha um vulcão na ponta do meu nariz. Era verde. Era extraterrestre.

- Mãe, Miguel tem razão. Eu sou uma espinha.
- Luizinha, ela vai sumir. Você é linda. E ele vai ver que você é linda.

Então eu fingi que estava doente e fiquei em casa três longos dias. Fiquei lendo as revistas da minha mãe. Fiquei vendo no orkut o que o Miguel gosta. Não achei nada. Mas queria ficar linda.
Pedi dinheiro ao papai pra uma missão muito importante. A palavra "missão" animava meu pai, policial dos médios. Fui com a Tatá na loja de meninas. Compramos de tudo. Tatá era mais velha e conseguiu comprar até sutiã com enchimento.

- Quem é essa menina?
Os amigos dele também queriam saber. Todo mundo queria saber. A lanchonete parou. A bola de futebol rolou para o cantinho da calçada, esquecida e murcha. Um menino até deixou o sorvete cair no chão de tão distraído.

Miguel começou a olhar e até queria falar com a menina linda. Mas a menina linda era eu. E quando Miguel veio falar comigo eu disfarcei, fiz que não era comigo.

- Qual o seu nome? Você é nova aqui? Mas você é tão linda!
Eu queria sair correndo de tanta vergonha. Mas eu lembrei de quando ele me falou aquilo e continuei.
- Obrigada. Você que não é. Parece um machucado que demora a sarar.

O gato comeu a língua do menino falador. Nem espinha, nem machucado. O cravo perdeu a rosa.

Luizinha e o professor de literatura

Mas me chamavam mesmo era de Mônica, da Turma da da Mônica. Usava quase sempre um vestidinho rosa com os cabelos revoltados e presos por um rabinho de cavalo. Era a cara da mamãe com as bochechas do papai. Oito anos de idade.
Meu primeiro amor foi um homem de óculos com armação preta, sem barba nenhuma, sorriso branco e fácil. Me deu um livrinho de poesias do Carlos Drummond no meu aniversário de nove anos. Eu escrevia uma poesia por dia. Todas pra ele.
Combinei fazer uma surpresa no dia 13 de dezembro. Com custo descobri que era aniversário dele. Juntei o dinheiro que mamãe me dava para comer no colégio. Nada de recreio. Acordei cedo e ansiosa. Estudava à tarde. Nove da manhã e lá estava eu acordando minha prima. Ela me maqueou, arrumou minha roupa e me ajudou comprar uma camisa xadrez de tom amarelado. Cheguei exatamente às 13:27 horas na porta do colégio. Testei o perfume no nariz, passei a mão pelo cabelo e entrei. As aulas começavam em mais vinte minutos. Passei um corredor, o pátio meio deserto, mais dois corredores pequenos até chegar a última sala do bloco B. Abri a porta bem devagar. Tremia tanto que quase fiz terremoto na cidade inteira. Fazia respiração de cachorrinho pra controlar os batimentos. Aprendi na TV. Quando entrei na sala dei de frente com o meu professor de literatura beijando uma mulher mais alta que eu, mais bonita que eu e mais velha que eu. A tremedeira parou de súbito. A caixa de presente caiu. Sai correndo não sei nem pra onde. Só sei que parei num cantinho escuro, pus a cabeça entre os joelhos e quis sumir de todo mundo.
Foi meu primeiro choro de amor. O mais dolorido. Mesmo porque doía tanto que eu não sabia o que era. Nem o que era amor.

segunda-feira, outubro 25, 2010

Puxa-me pela gravata

Tenha gravada na memória o dia que fui servo e não tirano. E vai tirando o pudor da sua boca. Desbocada é bem melhor. Mas só entre quatro paredes.
Das coisas que gosto é ter que sair a rua. Eu transpiro feito eles, animais. E, pior ainda, é ter que assim mesmo abraçar outros mais suados que eu. Eu pelo menos transpiro perfumado. Eles transpiram odor de fossa. Os meses de setembro e outubro são torturantes. Pedir voto é assim. E ainda dizem que é fácil. Ter que comer pastel, bolinho de batata, aipim, beber capirinha, cachacinha, isso tudo não é fácil. Não é fácil mentir, prometer, enrolar na resposta sobre promessas não cumpridas e me fazer como se fosse um deles.
Não sou das sacanagens nem das safadezas. Sou de palavra e de família. Uma palavra aqui, outra ali. Uma família aqui, outra ali. E o que que tem um caso aqui e outro ali? Deu no jornal que fiz sexo com a secretária no meu gabinete. Mas eu não tive culpa. Ela que pediu emprego pro namorado. Eu só falei que ofereceria uma oportunidade pro rapaz se ela puxasse a minha gravata. Ao jornal eu neguei. Afinal, foi na sala de reuniões e não no gabinete. Esses jornalistas...

terça-feira, outubro 19, 2010

Mulher de vinte e cinco

Só queria perguntar a idade. Apostava consigo que ela tinha vinte, no máximo. Foi ao encontro dela. Driblou dois, passou no meio da dança do terceiro e no quarto tropeçou bem de leve. Nada demais. Cutucou-a no ombro esquerdo, aproximou do ouvido pra que ela pudesse ouvir no meio do turbilhão. Antes disso lhes conto o início. Ele nunca saía pra boates. Só não gostava. Não bebia, fumava ou dançava. Era meio fofinho. Esquece, era acima do peso, gordo, referência pra quem vê e gigante pra quem abraça. Exagero, era um gordo quase magro, um esbelto quase obeso. Seu sorriso era um cartão de visitas, um samba-enredo com direito a nota dez. Por promessa, saiu com os amigos.
Foram para Juiz de Fora. Apenas três horas e meia de carro pela estrada. A contragosto entrou na boate. Bebeu uma caipirinha. Pensava que não poderia ser brasileiro sem ter provado ao menos uma caipirinha. O covarde virou corajoso, o tímido virou dançarino e o recatado virou conquistador. E voltamos, então, ao ouvido da menina.
Passaram-se algumas idas, algum desdém, algumas mexidas no cabelo, alguns olhares e algumas boas tiradas. Beijaram-se, trocaram MSN e sumiram. Acordou em casa, sozinho e com sensação de que tudo não passara de sonho. Mas não passara. Uma semana inteira de conversas pelo computador. O que era respondido com olhares e em, no mínimo 24 horas, é respondido já pela internet. O blog declara, o facebook divulga e encontra, o picasa mostra e o MSN permite. As conversas sobre a família, os medos quando criança, o prato preferido, a música que toca e o ex-namorados que passaram bem são coisas preenchidas pelo virtual. E nessa semana inteira conversaram e se apaixonaram assim mesmo pelas 18" daquela tela. É mais fácil ser verdadeiro por ali.
Dessa vez pegou um ônibus na sexta-feira a noite. Chegando em Juiz de Fora ela o recebera naquela rodoviária pequena e fria. O abraço e beijo mais quentes. Tiveram a primeira noite. Nada de errado. A semana inteira de conversa pela internet preenchia o espaço equivalente aos meses que os casais se conheciam. Os e-mails diários confidenciavam os sonhos. Uma distancia facilmente derretida. Um chocolate em cima do corpo, como molde de um sorvete a ser mordido.
Ele escondeu-se atrás da porta do quarto. Chegou sem avisar. Telefonou para o celular dela assim que percebeu que ela havia entrado na casa. Pediu pra que fosse ao quarto. Quando ela entrou a imagem dele em tempo real era transmitida para um monitor de 40" enfeitado com corações. Na tela ele a pedia em casamento. Pediu pra que ela se virasse para que o beijo fosse de verdade. Nada mais perfeito que um pedido virtual e um desejo real. Os cantinhos não são tão mais frios e distantes. Permaneceram conectados com esse péssimo trocadilho vivendo, como diria Cazuza, o bom do amor seja de mãos dadas ou clicando por aí. Ah, e ele perdeu a aposta. Ela tinha vinte e cinco anos. Mas nem parecia.

quarta-feira, outubro 06, 2010

Pior um carinho na mão que dois voando

O carinho vem sempre de quem não se espera tanto. Se quer encostar no cantinho verde de tinta, a mesma está pra lá de passada e nem faz sombra. Encosta no verde que vira amarelo. Poe a pontinha do dedo no azul que fica rosa. Nem viva esperando que preencham seus balões daqueles desenhos de colorir da época de escola porque vão rabiscar, despentear, amarrotar mas nunca, sinceramente, será colorido como você deseja. Não há o que se fazer para o descolorir. Aconselho que tu sejas homem de recusar carinho de quem não deseja. Não existe a máxima de que um carinho na mão é melhor que dois voando. Deixe os dois voando. Primeiro porque a fidelidade ao que se sente é uma dignidade dos grandes heróis. Também pudera, aceite carinho de quem não é o seu sonho e durmirá mal por tanto tempo que seja. Se não o carinho de quem se quer, nada feito.

quarta-feira, setembro 29, 2010

Me deporta

Embarcamos sempre numa viagem qualquer, as vezes sem destino, as vezes sem companheiro, as vezes sem carro, carroça ou avião. Nunca nos perguntam. Nos embarcam sem permissao alguma. E a falta de consentimento faz com que se torne uma viagem horrorosa, desgostosa, mulher peluda de pernas grossas. Nem um carinho é feito. Somos uma pena no furacão; uma gota na tromba d`água; um puro no congresso; um romântico no século XXI. Todos são levados, assoprados, arrastados, enlameados.
Somos lançados ao mar bravio, ao ar sombrio, sem bussula, sem boias salva-vidas. E é a partir daí que vai ou racha; quebra ou encaixa; afunda ou abandona; ou fode ou sai de cima ou debaixo; ou chuta ou sai da frente; ou assa ou queima;
Mal cheguei, mal passado e já to saindo. Não queria ter vindo mesmo. Me deporta que eu gosto.

sexta-feira, setembro 24, 2010

Texto Dilmafiga

Ganhei um abraço de março. Acho que foi junho que mandou dar já que ele ainda se demora a chegar. Uns diazinhos a mais e o inverno tira dos armários os casacos e as meias. Não aqui no Rio, claro. Lá pra baixo de São Paulo. Mas o abraço de março foi tão simpático que até a porta se abriu para que maio passasse sem noivas mesmo. Talvez fosse um abraço de piedade.
Setembro veio meio independente. Me agarrou pelas pernas. Me levantou de ponta a cabeça. É sempre um mês diferente. Veio uma carreira de novas e velhas. As velhas são umas senhoras nada caducas antes da eleição. As novas são as meninas burras da nova geração.
Outubro vem vindo, sabido. Cospe um domingo. E é uma das raras vezes que a segunda-feira é digna. Primeiro, véspera de feriado. Segundo, haverá passado a pior das eleições que o mundo já teve. Esquisito é que é tanta opção ruim que vai ganhar quem roubou menos, quem matou menos, que escondeu mais. Um novo político bonito é o ex-presidente da UNE e ex-prefeito de Nova Iguaçu, tipo aquele do impeachment. Um molusco versão boneca inflável. Presidente de plástico. Anda tudo muito colorido. Daí que embassam as vistas de quem queria pelo menos ver quem anda fodendo. É essa gente que pelo menos gosta de saber ao invés de ficar no escuro.
Daí novembro vai encerrando os trabalhos. Vale de nada. E dezembro começa a festa estranha de tanta gente esquisita. Afinal, posso nunca ter acreditado em diabo algum mas sempre espero que algum deste apareça dizendo que tudo não passa de uma pegadinha.

segunda-feira, setembro 13, 2010

Ao contrário da música do Herbert

O telefone tocou. Ele foi lá e cortou o fio. A energia elétrica acabou. Uma música invadia pela janela. Fechou todas as persianas. Pegou o celular e pôs uma qualquer para tocar. Nada muito agitado ou irritante. Preparou as flores, as pétalas e o aroma. Por não ser um homem bonito era um homem romantico, apaixonado, digno. Era um dos que se fala por aí homem com H maiúsculo. Não era meloso. Não era ignorante. Não era bobo. Não era machão. Não era ridículo. Não era garanhão. Era homem. O Homem.
Desamarrou a blusa mais parecida com uma bata. Fez deslizar o pano pelo ombro esquerdo dela. Surgiu a alça do sutiã. Pôs os dedos entre a alça branca e a pele dourada. Fez escorregar até o ante-braço. Encostou os lábios nos ombros dela como se agradecesse pelo momento, pelo cheiro, pelo sorriso, pelos suspiros. E ela realmente suspirava. Cada movimento dele a fazia contrair os músculos, a fazia prender por milésimos de segundo a respiração. Ele sentia isso. E se sentia o homem mais feliz do mundo. Deslizavam as mãos pelo corpo um do outro como se tentassem provar que aquilo ali existia. As coxas grossas dele a firmeza com que ele segurava a cama para que não fizesse barulho quando ela se mexia em cima dele a deixavam louca. A cintura fina dela e a força com que ela o apertava como se dissesse que não quisesse que ele partisse o deixava louco. Fecharam os olhos e deixavam se tocar. Permitiam. Talvez seja mais ou menos por ai. Permitiam-se. De vez em quando era bom nada mais importar. Ficaram de olhos fechados, quietos até que os pensamentos se cruzaram e viram que não era o corpo um do outro que fazia o tesão ficar daquele jeito. Viram, sim, que sexo com amor é a melhor coisa do mundo. E amaram-se como se fosse a primeira e última vez. Ao contrário da mulher da música do Herbert Viana ela não disse adeus, nem chorou sem nenhum sinal de amor.

terça-feira, setembro 07, 2010

É bem escrito demais pra ser bom

É quando tudo começa a ficar muito mais que meio torto. Maria Rita canta bem demais para tocar no meu dia a dia; ta calor demais pra ir a praia; Veríssimo é bom demais para a Academia Brasileira de Letras; seu cozido é bom demais para que eu possa comer; esse trem é bom demais da conta pra que mineiro possa ver; tá muito bonito pra um fotógrafo retratar; é chimarrão demais pra ser gaúcho; é consoante demais pra ser alemão; é elegante demais pra ser italiano; tá muito certinho pra que possa ser medido; é muito oval para ser circuito de automobilismo; é exata demais pra ser matemática; é muito gay pra parecer cazuza; é muita calcinha pra ser o Wando. É muito sangue pra ser um dos jogos mortais; é muito bom gosto pra ser Woddy Allen; é muito gostosa pra ser capa de revista maculina; é muito linda pra ser jornalista; é muito forte pro halterofilismo; é muito sedutor pra um vampiro; é muito ficcionista para ser um escritor; é bem escrito demais pra ser bom; é bastante viajado pra um turismólogo; é demais do contra pra ser mulher; é muito teimoso e nem parece um homem; é independência demais para um sete de setembro; rebola demais pro axé; xinga demais pra ser funk; corre demais pra ser tempo; é velho demais para saber tanto; é saudade demais pra ser amor. É verdade demais para ser ficção; é rápido demais para ser nunca mais; é longe demais para ser impossível; não é tarde demais para ler um livro. Talvez eu seja apenas o solteiro mais bem acompanhado do mundo. É amor demais pra amar sozinho.

sexta-feira, setembro 03, 2010

Como músculos

O amanhã começou hoje. E muito me perdoem os literários catedráticos da língua. Eu normalmente tenho prazer em respeitá-la. Mas, verbalmente o amanhã começou hoje. Diferente do que pensei o descanso tem que ser adiado. Nada de feriados prolongados, folgas agrupadas, ócio mal administrado. Os dias são como músculos que se extendem de uma ponta a outra. Precisam de exercícios. São como nervos nos quais uma ponta afeta a outra. Precisam de treino, testes, movimentação, ritmo. São como dentes em nosso corpo. Aparentemente bem. Dente mal cuidado derruba o mais forte dos homens. Derruba o mais bem preparado dos atletas. O músculo do amanhã começa hoje. O hoje começou ontem. Não são fatias que separam o bolo. O bolo é o todo. É o conjunto e não as partes. É o prato inteiro e não os cacos. É como chutar a bola para o alto sem que ela possa tocar ao chão. É o equilibrio. É a política de não-agressão. É Veríssimo. É a ironia. É o auto-conhecimento esfrentando chuva e vento. É o auto-convencimento. É o amanhã começando hoje, agora.

terça-feira, agosto 31, 2010

Acho que farei poesia

Acho que farei poesia
Coisa que não tem hora
Arte inocente
É recente e mente.
Farei poesia bonitinha
Do que mexeu dedinhos finos e mágicos
Do que viveu dias felizes e trágicos
Porque a vida é poesia desde o primeiro dia

Porque a vida é poeta desde o primeiro beijo
E se não fosse o primeiro dia, o primeiro beijo
Não viveria viver do beijo lerdo
Não gozaria gozar do gozo aberto
Não saberia saber do jeito certo
O que eu esqueci de esquecer
E se não fosse o primeiro gozo
Não saberia como aqui é chato sem você.

terça-feira, agosto 24, 2010

Combinado Descompasso

Era como ter e não ter. Era como na música do Skank: "Te ver e não te querer é improvável, é impossível. Te ter e não te querer é insuportável, é dor incrível". Estava a metros de mim, fitava de vez em quando um olhar de criança enferma e eu não podia sequer tocá-la. A tinha virtualmente na certeza de que mexia com um pouquinho que fosse a brisa de tentação dela. Já não podia tentar tocá-la. Combinado descompasso, uma dança ensaiada para ser diferente, para dar errado. E estava anunciado que, a não ser por um milagre, nada mais passaria daquilo. Um ensaio de tropeço, um canto tropeçado para caírmos juntos, deitados, abraçados. Talvez a viagem de ida anunciava prematuramente a viagem de volta. O mesmo lugar de encontro era também despedida, perdão ao parafrasear mais uma música. O nosso errado é o mais certo. Combinamos que estava errado viver como amantes de tela, de banda larga. Combinamos sermos justos apesar de toda injustiça. Combinamos além do óbvio. Combinamos apesar da concordância discordante. Combinamos de nos separarmos mas não combinamos que conseguiríamos.

domingo, agosto 15, 2010

A verdadeira Garota de Ipanema

O Rio de Janeiro, dizem, vive de música e poesia. Drummond e Jobim definiram o tom. Mas o que mais se vê é o desfile na orla de mulheres lindíssimas. O povo de fora acha que nao existe mulher desse tipo. Eu pensava que talvez pudesse ser exagero.
Lá pela metade de Junho o Rio sorria meio nublado, meio indeciso. Copacabana nao inspirava musica. Do Leme ao Leblon nada caía nos braços teus ou meus, sei lá. Nem Ana Maria, do biquini amarelinho de bolinha bem pequenininho, aparecia pelas areias. Mas, como poeta, pude ver quando o Rio sorriu. Eu sei que não sou um Diogo Nogueira mas faço samba como ninguém para os poetas. Sei que nao sou um Gianechinni mas também não sou nenhum Serra. Sei que não sou Chico mas faço de voce mais que um romance, uma música ou um porta-retrato no seu quarto. A garota de ipanema eu sei bem quem é. A do poema, um engano perdoável, deve ficar meio triste. O mar de ipanema parou, a brisa parou, a areia esvoaçante e os ambulantes incessantes pararam. Tudo pra ver a verdadeira garota de ipanema passar. E voce, magra e linda, torneada e pequena, pele branca e cabelos anelados um pouco abaixo dos ombros, olhos caramelados e brilhantes, passou. O Rio anda esperando. Ainda bem que ela disse sorrindo que logo logo iria voltar.

quarta-feira, agosto 11, 2010

Ode à mim

Talvez no mais imperfeito dos terrenos inférteis dos subúrbios da alma nunca tivera sido tão difícil controlar o ódio. Amar é fácil. Difícil é a demonstração, a celebração dançante, as palavras televisionadas, os carinhos explícitos. É muito mais fácil hoje em dia odiar. Pra começar, aqui deste canto com ar-condicionado e canapés de pé em pé, uma palavra que tem o dia em seu meio é uma ponta estranha que os deuses cismaram de ironizar. E pra finalizar, vem o próximo e mal fadado parágrafo.Porque odiar a figurinha da tv, a figurinha da internet, a figurinha do legislativo, a figurinha do relativo, a figurinha da figurinha do amigo é muito mais em conta que amar a todos esses? Talvez algum inóspito psicólogo tresloucado saiba nos entreter com um pouco mais de entendimento sobre a realização pessoal daquele taxista que não faz questão alguma de esconder que odeia o passageiro, o dinheiro inteiro, o destino, o clima, o tamanho da mala e até o próprio carro. E me explique com a mais sábia das burrices porque é tão incomodo dizer que tem prazer em ver a amiga sorrir, no amigo fazer piada, no cachorro correndo com a criança, no convite feito, no pagamento na data certa, na devolução do dvd em perfeitas condições e até na vez que o amigo saiu de casa às 23 horas para o salvar de uma pane seca em plena Rodovia Washington Luiz. É mais fácil odiar.Porque a onda maneira desses rudes humanos é ser do contra, ser revoltada. Se alguém diz que valoriza e até torna unica a presença da menina na festa ela mesma torna a declaraçao de um agrado inofensivo e desimportante.
Ouse entender o odio como a lambança cretina de negaçao, do nao querer, do mal querer. Ouse dialogar com as analogias. As listas nao sao mais das melhores musicas, das mais pedidas da Bilboard. The Cramberries estariam fodidos. Peça a lista dos maiores da historia, dos melhores da historia, dos mais belos, dos mais relevantes. Diria o economista sociologo desportista politico e carismatico que antes a sociedade consumia por igual em escala menor e que hoje ela consome em escala maior e mais segmentada. É a tal atençao dada para as subclasses dos cornos, cornos de pijama, cornos heterosexuais, cornos de honra, cornos gauchos, cornos de pau pequeno. A classe dos menores e irrelevantes, a lista dos imperfeitos. Hoje, amigo que esconde a calvice, se voce pergunta do que as pessoas gostam ela te dizem o que nao gostam. Hoje, amigo com vergonha do passado suspeito, peça a lista da inclusao e ganhará a da exclusao. Quem é bom? Nao. Quem é ruim. Nao que existam mais bons que ruins. Existe o prazer sadico de falar mal e do mal bem mau.
Melhor resgatar a cegueira do poema antigo que dizia que eu quero te matar porque quero te viver, quero te comer porque quero te alimentar, quero te sujar porque quero te limpar, eu te odeio porque te amo.
Antes fosse.

quinta-feira, agosto 05, 2010

Digo - Fim

Dormia sem perceber. A criança só conseguia acordá-lo quando acertava o meninao em cheio. Eram dois, tres gritos dele. Eram mais de dez minutos de choro desesperado da criança. E era mais uma noite desaforada em que a esposa o pusera pro sofá. E no sofá eram cinco contas atrasadas, tres empregos, a falta de mulher, de férias e o escesso de gordura. E um pesadelo. Quando acordava via na filha a menininha do dia da chuva. Olhava pra esposa e via a mulher dos dias de sol. Abraçava as duas. Fazia sol e chuva. Era um casamento sem viuva. E fazia arco-iris.
Foi levar a criança ao colégio. Era uma das viagens de onibus pra algum sitio desses. Voltariam no domingo. Deixou a menina e sentou-se num banco. As paredes maltratadas. Deviam cuidar mais. As salas tão mais miudas. Deviam lavar menos. As mãos cobriam o rosto e cheiravam diferente. E entre os dedos ninguém. Era dia chuvoso. Mas era chuva fraca. Riu de si com satisfação de criança com doce em mãos.
Ultrapassou sinais vermelhos, cantou Dominó e quis merendar antes de chegar em casa. Mais uns vinte minutos e já estava em frente ao espelho do banheiro do quarto.
A menininha, esposa, chegou em casa toda atrapalhada com o guarda-chuva. E entrou assim mesmo no quarto. Ele saiu do quarto dando um boa noite e um selinho nela. Pisou na sala e voltou para o quarto. As mulheres não demoram mais que três minutos para se verem em algum espelho. Entrou sorrateiro no banheiro e ela chorava.
"Voce é o amor da minha vida. Namora e casa comigo? Ass.: Digo".

Gargalharam lembrando disso.
- Ja fazem apenas 76 anos daquele dia chuvoso na quarta série.
- Fazem? Não, meu velho. Fazem 74 anos. Voce erra sempre por dois.
- Nao, fazem 76 anos. Você lembra da...

É, meu velho. É o amor. Na chuva, na infância...

sábado, julho 24, 2010

Digo - Parte 2

Bobeira de adolescente. Contavam namorar desde aquele dia de chuva, da lepospirose e da repetência da quarta serie dele. "Não iriamos começar a namorar se nao fosse isso", dizia o rapaz. "Namorariamos de qualquer jeito", devolvia a menina. Mas, de tao criança somente os apelidos. Chamavam um ao outro de menininho e menininha. Chamavam aquilo de um e de outro de meninao e meninona.
Ela nao queria. Ele queria muito. Faziam todas as brincadeiras mas nao chegavam ao playground. Ela queria medicina e ele futebol. Ela escrevia poesias e ele nas revistas de video-game. Ela era baixinha. Ele magro. Ela esbelta. Ele alto. Ela tinha medo de altura. Ele do ferrao de abelha. Foram a praia duas vezes matando aula. Ela sonhava com Paris. Ele sonhava em conhecer o Ronaldo. Ela dançava É o Tchan! com amigas quando tinha 15 anos. Ele usava camisas de bandas de rock quando ainda existia a radio cidade.
Os pais da menina estavam de mudança pra Florianópolis. Os dele nao gostavam da revolta que ele fazia por querer ir junto. Fugiram em uma noite de chuva. Um dia antes da viagem de mudança ele se meteu a fazer uma casa da arvore no meio da floresta da Tijuca. Dormiam sem casa alguma. Levaram fandangos, coca-cola, mirabel e agua. Tomavam banho nus. Ela queria. Ele queria a mais tempo. Em dois dias foram achados. Assim mesmo ela foi pra Florianopolis. Ele foi pra casa mesmo. Em 5 meses ela voltou, sozinha e acompanhada. Cabisbaixa e mais mulher. Bateu à porta dele. Ele, Digo, mergulhou na rotina sem mesmo querer viver tanto. Mas vivia. Era pra ser assim. Sem razão. Ela enrolou os cachos com os dedos e o chamou pra perto. Mais perto, disse. Deitou o queixo no ombro esquerdo dele. Disse com voz veludada o que ninguém imaginava. - Menininho, estou esperando uma menina sua.

quinta-feira, julho 22, 2010

Digo

É só um menino. Só um menino magro e baixo. Fechava os olhos sentado naquele banco do colégio ao lado da segunda árvore atrás das salas de aula sempre que ela passava. Abaixava a cabeça e falava bem baixinho o quanto amava aquela menininha.
A menininha era da terceira série. O menininho da quarta. Ela media 3 centímetros a mais que ele. Ele achava um absurdo. Ficava pendurado no galho do cajueiro, comia em pé, vivia de pé. Isso pra crescer logo. Só fazia doer o pé. Ela branca de cabelos castanhos. Ele moreno dos cabelos pretos. Ela vivia enrolando-os pelos dedos. Ele vivia enrolando a merendeira no casaco. É pra ninguem ver que eu uso merendeira, dizia. Ela usava um arco amarelo que combinava com as paredes do colégio. Ele amarrava cadarço do tênis no tornozelo.
Criou coragem e escreveu no espelhinho que ela usava. Escreveu com canetinha azul. "Voce é o amor da minha vida. Namora e depois casa comigo? Ass.: Digo". Nas regras do amor está tudo errado. Nos limites da razão está tudo errado. De longe a menininha sorriu faltando um dente. De perto ele viu que faltavam dois. Ele pensava que se ela tinha perdido os dentes de leite, era sinal de que estava ficando pronta pra namorar. Estava criando juizo, dizia ele.
Chovia demais. Tinham de andar por volta de cinquenta metros ate em casa. A dela era a vinte passos dali. O menininho se atrapalhava enfiando a merendeira numa mochila grande. A menininha deixou cair o guarda-chuva duas vezes antes de sair de debaixo da marquise. Nao conseguia atravessar um metro de extensao de uma correnteza de agua da chuva e sujeiras mais. Digo sorriu. Ja estava ao lado dela e sabia que pelo jeito que ela o olhou, havia aceitado namorar e se casar com ele. Entao, como bom homem, tirou o casaco e pôs na cabeça da menininha. Pegou-a todo esforçado no colo e encarou a agua, a rua e o frio. Ela sorriu com timida satisfaçao. Deu um beijo na bochecha bem molhado e correu com guarda-chuva torto os dez metros que faltavam ate a porta de casa.
A menininha de cabelos cacheados e bochechas vermelhas passou os outros quatro dias procurando o menininho moreninho que a olhava entre os dedos que escondiam a cara muito mal disfarçada.
Digo ria-se de bobo. Dizia estar no ceu. Mas a internaçao por leptospirose está longe de ser algo dos céus. A mae que nao se ria muito. Acabara por perder o ano. Teria que fazer a quarta serie denovo. Mas faria apaixonado.

sexta-feira, julho 09, 2010

Cartão de Embarque

O raio de sol ofuscou os óculos escuros, batendo enviezado entre o rosto e a lente preta. Mesmo assim respondeu ao asceno. Passou a carteira da mão direita para a esquerda e levantou o braço. Deu tchau também e viu um sorriso contido nela. Aliás, caríssimos, quem era ela? A memória não funcionava. Nenhuma gaveta escondida na cabeça continha uma pasta com uma foto 3X4 daquele rosto.
Quando livrou-se do sol viu que realmente nunca havia visto a mulher. Mas era branca, cabelos ligeiramente anelados, castanhos, vivos e um par de olhos amendoados e maiores que os dele, que eram puxados feito lã antes do tricô.
Carecia de covardia. Era corajoso demais. Não deixou de desafiar a mulher. Insuava mesmo. Não como leão atrás do filé. Parecia a criança fugindo da chuva.
- Topa um suco de uva? - arriscou.
A pergunta surgiu depois de trinta e quatro segundos de deslocamento de onde ele estava até a porta da sala de embarque do Aeroporto Internacional de Manaus. Ela carregava uma bolsa preta de couro fino de tamanho médio, entreaberta, dependurada ao ombro esquerdo, amarrotando a blusa bem levemente insinuando que ela havia acabado de mexer na bolsa e de tão recente não arrumou-se para entrar na sala. Ele deduziu que o embarque ainda esperaria por ela. Talvez uns vinte minutos mais.
- Uma coca-cola? Seu embarque não começou ainda. - insistiu.
- Aceito. Mas a coca-cola cai melhor nesse calor, não? - respondeu a mulher.
Em mais dez segundos até a lanchonete do lugar ele reparou na falta de aliança, nos pés de número 34 ou 35, na cicatriz de dois centímetros abaixo do queixo, na calça um pouco justa e no comprimento da blusa xadrez que indicava que naquele calor uma mulher escondendo a barriga é sinal de insegurança com o próprio corpo. Talvez tivesse o corpo mais bonito que ele já viu mas a mulher devia ter lá suas crises.
- Sou carioca.
- Sou do interior de São Paulo.
- Sou rubro-negro, adoro samba, futebol, churrasco, mapas, músicas antigas, turismo, cidades serranas, promoção de passagem aérea e piadas sem graça alguma.
- Sou corinthiana. O resto eu gosto tanto quanto. Terei filhos, um marido moreno, sou viciada em carinho e gosto muito de sexo, sou protetora, me divirto sozinha e sonho que o turismo será mais que promissor.
- Dizem que sou conselheiro e divertido.
- Dizem que sou amiga e engraçada.
- Dá no mesmo, né?
- É, dá.
E o assunto pouco importava. Ele continuava estudando todos os cantos dela. O perfume era de preço mediano. Ele achava que mulher digna era aquela que nem era tão futil pra gastar mares de dinheiro com essas coisas e nem aquela que nada gastava com isso. Tinha de ser equilibrada. Ela parecia.
- Gosto de ser moreno. É uma cor equilibrada. Entre o negro e o branco.
- Gosto de ser timidamente simpatica. É um equilíbrio entre a euforia e o silêncio.Entreolharam-se no calor do Amazonas. Ela parecia se perguntar quem era ele. Ele, claro, nem queria se perguntar quem era ela.
- Nossa, perdi o meu vôo.
- Talvez eu tenha perdido o meu também. Mas acho que ganhei o dia.
Tudo em volta ficou ferozmente congelado. Batiam com facilidade a casa dos 45ºC graus.
- Com certeza eu não te conheço. - afirmou ela.
- Confundi um asceno.
- Não fez mal. Eu confundiria. Mas, só estava ajeitando a blusa.
- Não precisa justificar. Te dou todo o tempo do mundo pra me deixar em dúvida.

sexta-feira, junho 25, 2010

Vício Canalha

Uma mulher.
Uma mulher ciranda.
Umbanda.
Que manda.
Cigana
Uma mulher cheirosa
Colorida
Preta
Pálida
Quente
Sofrida
Uma mulher saliente
Calada
Casada
Adocidaca
Machucada
Carente
Forte
Atriz.
Uma mulher gostosa
Suave
Crente
Faceira
Uma mulher vicia
Qualquer
Feitiça
Atiça
Até noviça.
Uma mulher
Tem poder
Remedia
Ou mata de vez.
É minha droga
Perco a órbita
Mas eu amo todas
Denovo
E outra vez.

quarta-feira, junho 16, 2010

Mal passado

Viver é uma eterna comparação do que se viveu de melhor com o que se vive de pior. Comparamos sempre involuntariamente. Se hoje vamos a uma praia qualquer sentimos saudades da praia mais quente e mais vislumbrante que visitamos. Se comemos de um feijão tropeiro absolutamente normal aparece uma pequena decepção de não estar mais degustando aquele feijão tropeiro e fresco da roça.
Nunca iremos viver o que já vivemos. O intocável permite que alguns momentos sejam eternos. Se é palpável, é humano. Se é humano nem é tão bom. Por isso o Michael Jackson é estrela. Por era intocável. Por isso Paris é uma cidade a ser conhecida, por ser distante. Por isso o invisível amor de ontem é muito mais amor que o amor de hoje. Até que se prove o contrário andar de charrete era mais divertido. Mas vem sempre alguém sorrindo demais mostrando que a felicidade de hoje é a plenitude perfeita de amanhã.
Não existe uma fita a ser rebubinada. Hoje é dvd. Não existe um guaraná mais gostoso. Hoje é refresco de caixinha. Não existe falta de proteção. Hoje é camisinha feminina. Não existe mulher zero kilometro. Hoje é "do passado eu não sei". Não existe um passado melhor. Hoje é viver. Não existe uma verdade maldita. Hoje é você.

quinta-feira, junho 03, 2010

Teoria do Amor Perecível

Fosse uma boa metáfora para te dizer com exatidão o que o tempo faz conosco quando amamos muito e por muito tempo, sei lá, saberia dizer não. Amor, o amor, aquele amor, grande e pomposo, dizem alguns poetas, é eterno. Palavra bonita. Seu sentido mais belo ainda. Quando misturados geram até delicioso êxtase. Amor eterno. Um sonho eterno. Um sonho de amor. Sonho tem durabilidade. E para mim, amor também.
Amor é recurso escasso consumido pelo tempo. O tempo pode ser curto, longo ou satisfatório. Um amor pode durar sessenta e nove anos e assim mesmo ser eterno. Um amor pode durar três, quatro anos e também ser eterno. O amor é um bem durável, perecível. Por certas vezes tem até uma obsolescência programada. O insosso é incolor, o sem-graça é inodoro. Se perde a cor após algum tempo é um amor disfarçado. Comodismo, costume, rotina. Todos se disfarçam de amor. Como todo rompimento é difícil saber quando é mera crise ou quando é ausência de amor. É dificílimo desgarrar das raízes, da até boa normalidade. Amor é emoção, é surpresa, é especial, é o descontrole, é paixão. Amor é risco. Amor é arisco. É teimoso, manhoso. Amor é um chocolate ao leite consumido pelo mais chocólotras dos ventos: o tempo.
Pode ser que a rotina dê certo. Fácil ser terno o caminho liso, sem lombadas e buracos. Haverá possivelmente felicidade. Haverá com certeza, incompleta. Existem os artifícios elásticos. O amor pode ser esticado com a boa vontade, o deleite. Como a ausência dessas atitudes causam o seu desgaste. Amor acaba tão inesperadamente como começa. A aceitação que é das mais difíceis.
Os exageros são do amor. Me perguntam se o amor é divisor. Não. É multiplicador, somador. Fosse amor não haveria de ser comparado com outras tentações e nem seria questionado. Fácil também falar como antropólogo, alheio, bem do alto, de fora de qualquer tendência. Justo. Justo também não entender nada do que disse. Ame, acostume-se, caia em dúvidas e descubra do que falo. É carinho, gratidão, desamor.

segunda-feira, maio 31, 2010

Manual de Desinstruções

Um dia de tanto pedir recebi sabe-se lá como um manual de como amar, do caminho para se chegar a plena felicidade e de como sair de , assim, tão menos presentes dores do coração. Era um didático de mais de 700 folhas, com gravuras e dicas irresistíveis. Até receita tinha. Não me faça recordar das gramas e colheres mas estavam registradas doses de manga doce, tabletes de chocolate, algo de aroma de jasmim, minutos de desenho animado, horas e horas de sexo feito com amor, momentos de adrenalina no limite, canto da torcida no estádio lotado, reencontros logo após desencontros que matam saudades, recomeços após recomeços, reconhecimentos de carinho, de pessoas, de sabores, viagem com amigos, dança sensual, dança engraçada, descobertas inéditas para o mundo novinhas em folha, sucesso de novela e liberdade de beija-flor. Um manual meticuloso, metódico, racional e bem planejado. Ensinava como numa linha de montagem passo a passo como bem estar. Retomei a primeira lição. Estava amando, e amando bastante, lutando contra as corriqueiras barreiras de um amor grandioso. Lá pela página décima quinta dizia que devemos olhar bem nos olhos, dizer as palavras certas, treinadas, e bem colocadas no momento, entregar algumas coisas bem ordenadas. Parei ali. Ordem. Onde há, no amor, ordem eu quero desordem. Onde há boa colocação eu quero espontaneidade. Onde há treino eu quero improviso. Fui a um fumante mais próximo, pedi seu isqueiro e pus fogo. Da fogueira esquentei o dia gelado. Abracei a minha amada que pela primeira vez aceitou um beijo meu.

domingo, maio 23, 2010

E se eu te oferecesse um tapa?

- Você sempre aceita tudo que ofereço? - perguntou Camila.
- Acho que sim.
O que ela quis com essa pergunta? Eu realmente não sei.
- Porque? - insistiu.
O vento ficou surpreso. Até o gatinho Memeu saiu de fininho.
- Porque...sei lá porque.
- Responde.
Olhei intensamente naquela bolinha preta dentro dos olhos cor de caramelo dela. Olhei pros lábios finos, como ligeiros rabiscos na hora de finalizar uma grande obra. Minha boca secou.
- Acho que é porque ainda não houve alguma coisa que eu pudesse negar.
- E se eu te oferecesse bosta?
- Eu negaria.
- Bom. E se eu te oferecesse um tapa?
- Eu teria que ter feito algo pra isso.
- Então faça. - disse ela ajeitando o corpo para receber algo qualquer que seja.
Eu queria ou não fazer valer um tapa? Demorei. Não conseguia pensar. Ela me daria um tapa se eu roubasse um beijo. E talvez nem me considerasse mais.
- Então faça, cara.
- Tem certeza? - emendei amedrontado.
Ela parou. Fuzilou com o caramelo dos olhos. Me melou. Escorreu um veneno em mim. Era o alcool procurando a combustão. Riu-se de canto de boca, olhou para minha boca, pôs a mão direita esfregando a nuca e os cabelos absurdamente lisos:
- Vai fugir do meu desafio? Anda! Faça algo para merecer um bom tapa.
Cheguei mais perto. Respirei fundo como se fosse mergulhar em um mar escuro e gelado.
- Espero que valha um tapa.
Passei a mão na...
- Puta que o pariu. Isso? Mão na perna?
- Voce é muito fraco.
Eu sorri. Adorava entortar a primeira impressão.
Peguei-a pela blusa. Rasguei num movimento só e tão facilmente que nem sei como. Com o braço direito puxei-a, pus o antebraço bem naquela curva da coluna perto do baço, antes da bunda. Ela tinha covinhas.
- Uu... - gemeu ela.
Um beijo interminável. Ambos ofegávamos desesperados. Era um prato quente esperando pra ser degustado. Não podíamos deixar esfriar. Camila abriu o zíper da minha calça que caiu na hora e correu pra abrir a dela que reclamou pra descer. Pulou em cima de mim. Pus a perna direita em cima da cadeira. As pernas dela enlaçavam a minha cintura. Mordeu meu pescoço. Mordi o bico do seio. Ela tremeu e começou a gemer mais. Rebolava com o meu dentro dela. Rebolava ritmada e felina. Tentou me arranhar. Juntei os dois braços atrás das costas dela e segurei com apenas uma mão. Ela continuou rebolando de um lado pro outro, de cima pra baixo. E eu fazia os mesmos movimentos, só que mais violentamente. Estávamos já suados. E tudo se misturava. Pés nas pernas, coxas nas coxas, mão na bunda, mão no meio da bunda dela, um dedo só, aquele som de pele com pele, barriga com barriga, peito com peito, com ombro, com boca, com língua, com dedos. Ela já gritava. Eu também. Até que ela começou a tremer, gritar descontrolada e diminuir os batimentos, os movimentos e abriu os olhos bem lentamente.
- Acho que sim. - disse ela.
- O que?
Ela desceu e eu ganhei um forte e merecedor tapa na cara.

terça-feira, maio 18, 2010

À gerência

Pedimos a colaboração de não jogar palavras ao vento, não cobrar taxas por declaração de sentimento, não acabar com prazer de momento. Pedimos que os senhores e senhoras sejam razoavelmente educados e tolerantes com qualquer coração, olhar perdido e exclusão de cartas, papéis, msn e orkut. Pedimos que não pixem retratos, não joguem água em nenhum chopp, que deixe ser como será e que este coração, se for morrer, que morra de amor.

À gerência.

quinta-feira, maio 13, 2010

O homem nu

Acho que vou ficar surdo.
Não ouvir o que o passado tem a dizer.
O passado é ruim, é mal passado, é amarrotado.
Depois vou ficar mal.
Serei uma maledicência deliciosa de homem com barba cerrada.
Acho que vou ficar impertinente.
Vou sair por ai só pra dizer que saí.
Quem disse que sou sem sal?
Logo depois vou ficar mais teimoso.
Tem que dizer pro vencedor que ele não ganhou nada.
Tenho que, ao menos, fazer da vitória do outro algo valioso.
Acho que vou ficar dengoso.
E no final da batalha eu deito no colo do meu dengo.
No momento seguinte vou ficar bonito pra caramba.
Vou me pintar feito um quadro manchado.
E será assim que vão me achar belo.
Gritem!
Acho que vou ficar mudo.
E tanto quanto ficar como um animal.
Das poeiras que enxergo eu relevo que tenha defeitos.
Mas revelo que tem paraíso na voz, felicidade na cor.
O tom de pele esquenta.
Acho que vou ficar indecente.
Por isso vou ficar gostoso.
Por isso você já é gostosa.
Acho que vou ficar esquisito pra caramba
Se eu parar de achar
E ficar logo nu.

segunda-feira, maio 10, 2010

Amor de salão

Era número cinco, na rua da ladeira. Tremia a cada passo em direção ao salão. Chovia um mundo inteiro. Haviam árvores em todo o calçamento. E mais que pessoas, mais que sorrisos, mais que música, havia medo. Era a primeira vez que se viam. Era um aniversário vistoso. Sei lá. Nunca se soube que festa era aquela. Sentou-se, ele, à direita do que se parecia com um pedestal. Sentou com uns três estranhos. Padeceu horas com os olhos desencontrados por aí. Mal imaginava o que seria ela. Magra, rechonchuda, alta, miúda.
Quisera ela que fosse tudo certinho como nos sonhos mais rosas. Se fosse fácil não existiriam as novelas. Nem esse aqui que vos escreve teria tamanho tesão para lhes contar. Nem saberia como descrever o quanto ela demorou tanto escolhendo a mais perfeita roupa que não havia reparado nas duas horas e meia de atraso.
O salão era espaçoso como uma audiência de pena de morte. São sempre kilometros que separam um do outro através de um silêncio sem perdão. E o castigo de serem desconhecidos era o sadismo mais gostoso que os dois disputavam. Um lugar comum. Sim, comum no século passado. Detalhes do período imperial. Mais parecia um Theatro Municipal em um espaço atemporal com cadeiras bem distribuídas e luzes a meia-luz.
Mal chegou e o viu, calado, encrostado entre a solidão e a multidão. Seguiu na direção dele. Tocava numa romântica qualquer. Ele seguia os olhos para o chão depois de ter visto o relógio pela enésima quinta vez. Ele levanta-se. Ela se aproxima. Apagam-se todas as luzes. Nem era combinado. Realmente acabou a energia. Vá lá, a mão dela escorreu pelo peito que se virava em sua direção. Ninguém enxergava nada. Eles enxergavam tudo. Os gritos evasivos de quem tem medo do escuro deixavam surdos ambos. Queimaram quarenta e cinco segundos tentando fazer com que as bocas se encontrassem. Recostavam os lábios pelos pescoços, pelos ouvidos, pelos olhos e bochechas. Fecharam os olhos. Pareciam os únicos que enxergavam na escuridão. Ninguém os via. Nem a mais eficaz visal acostumada com o breu os via. Apagaram de vez as luzes do minutos. Os corações misturavam as batidas ora por estarem juntos, ora por se tocarem, ora pelo perigo, ora pela multidão cega, ora por ser sexo mesmo. Não sabiam quanto tempo tinham. E assim mesmo foi. Ela facilitou e desceu as alças do vestido. Ele tirou a própria calça como se fosse uma sujeira na pele. Livrou-se do paletó e da camisa só livrou-se quando ela arrancou-lhe ignorando os botões. Enquanto isso ela ja estava só de calcinha. Ele pôs as duas mãos em cada lado da cintura dela e a trouxe pra perto, rápido. Ela pôs as pernas entre a cintura dele num pulo de gata. Assim mesmo, fazendo cócegas debaixo dela que ele a levou para o canto. Não esbarraram em ninguém. Rasgou a calcinha como se fosse papel. Talvez a calcinha já quisesse sair por si só. Puxava pela nuca os cabelos curtos e negros da mulher. Ela arranhava-lhe com dentes e unhas. Fazia mordidinhas entre as pernas dela. E depois ela entre as pernas dele. Ela fingia ser um pirulito que nunca poderia acabar. Fazia devagar para não gastar. Fazia rápido para gozar. Era indecisa. Ele também. Conviviam bem com isso. Sabia cada coisa que ela gostava. Mas era hora de ser o homem estranho. Ela também. Por isso experimentou colocá-la de costas beijando a nuca da branca, encaixando tudo que desse atras dela. Com a mão direita colocava os dedos deslizando por virilha abaixo. A mão esquerda revezava entre boca e seios. Puxava os bicos até se excitar com gemidos e tremores das pernas dela. A barriga se contraia. As pernas apertavam como se fossem matar alguém. Até que ela de repente saiu de perto e deu-lhe um bom tapa na cara. E deu mais um. Mais outro. No quarto ele segurou a mão. Com a mesma mão segurou uma das pernas. A outra segurou somente uma perna. Abriu e pulou nela como se fosse um castigo que a criança mais espera. Não podia gemer. Mas o último orgasmo foi tão forte que não teve jeito. Gritou. E a luz piscou. Menos de um segundo. Eles recuperavam o fôlego. Não sabiam onde estava qualquer roupa. Por ali só caminhava a calcinha rasgada. E assim ficou.
Acenderam-se as luzes do salão. Já eram cinco da manhã. Não havia mais ninguém em um festa apagada.

quarta-feira, maio 05, 2010

Domada

Quero uma apática
Que não faça pirraça
Não me arrebata em nada
Faça menos graça
Faça nada em toada
Não reclame da toalha molhada
Nem finja desgraça

Quero uma amarga
Sem sorrisos piranhos
Que não fale se arranho
Nem se barganho
Nem se demoro no banho
Que não me agarre no canto
Alguém que não amo.

Quero ninguém então
Perdido no senão
De ter escutado um não
Mulher eterna, senhores
Desgraçado coração
Cuspa na minha mão
O amor vivido em vão.

- Mentira!

domingo, maio 02, 2010

Mão Direita

- Bom apetite. - Obrigado.
Quem deseja bom apetite para quem vai escrever? Era coisa de escritor mesmo. Pareciam dois personagens dos filmes do Woody Allen, duas caricaturas dos intelectuais novaiorquinos excêntricos e covardes. Que ele tivesse um apetite enorme por boas palavras, inspiração e tudo o mais do mais. Mas que escritor vai ter boas palavras se ele apenas vive de romances encoxados de mel? As palavras boas estão pelas ruas. E o escritor que vos escreve mal sai do casulo. O Rubem Fonseca, por exemplo, é um enjaulado tinhoso que não suporta sair por ai a toa para ser visto. Mas já viu bastante para uma vasta obra policial. Não precisa nem escrever mais. Quanto mais sair pra ver a vida. Por tanto e tudo, resolvi perambular antes da primeira palavra do último capítulo da derradeira história que me daria talvez o ouro da literatura. Daria o reconhecimento de fãs, os três devotos leitores que, sabe-se lá porquê, continuam lendo persistentemente. E com uma câmera na mão o matuto tirou fotos e deu esmola, molhou e foi molhado, trabalhou e foi muito bem trabalhado. Viu o deficiente mijando em si, arrastando o cotoco pelo chão do trem choroso. Viu a criança engraxando sapatos na frente da rodoviária, tão novo e inocente que ainda sabia sorrir. Ah, deixa pra lá.
Voltou para escrever as ultimas linhas. O dedo indicador da mão direita respondia mal. Parecia fome. Comia algo com leite. E tentou escrever. O dedo indicador se mantinha encolhido assim como o dedo médio se encolhia teimoso que só. Ao passo de mais dez minutos a mão inteira estava paralisada. E era um destro. E só. Ficava por ali sem terminar o romance. Era preciso, a partir dali, fazer nascer a mão esquerda, ou os pés, ou a boca. E fingir que nunca houvera mão direita. O pior, dizia o boêmio, não era não poder escrever. O pior era ter que, pra sempre, apertar sempre com a mão esqueda.

quinta-feira, abril 29, 2010

O livro que amaldiçoava quem o lia pela metade

Andrezinho, que não é o do Molejão, corria das letras como toda criança. Pelo menos como toda criança que conheço que são uma meia dúzia de figurinhas que uma hora eu quero matar um pouco, outra eu quero matar de vez. Desculpa, mas não é nada disso. São boas crianças tolas como eu fui, como voce foi, como nossos pais foram e cismam dizer que nem eram. Imagina tua mãe tolinha menina dando mole pra um daqueles meninos populares à epoca do segundo ano do segundo grau? Ensino médio é a média que fizeram conosco, geração jaspion e chaves prima mais velha da geração teletubbie e pokemon. E Andrezinho, com 11 anos, nunca havia lido um livro por inteiro. Nem o livro do Joelho Juvenal. Muito menos as aventuras do Menino Maluquinho. Só queria saber de jogos on-line no PC, Ben10 na TV e Coca pra beber. Muito se passa por ai mas a Coca-Cola é a mesma que nossos pais bebiam.
O menino recebeu um livro de presente de aniversário cujo título era "A cadeira que falava verdades". Rá, cadeiras não falam, dizia ele. Menino burro que não conhece metáforas. Sabia muito bem quem era o Adriano Imperador e a escalação inteira do time do Flamengo. Mas não sabia nem o que era a ironia. Que assim seja. Mamãe e papai sequer olhavam para Andrezinho. Era a babá, a explicadora, a diretora do colégio, os inúmeros professores como garçons de rodízio de pizza onde nunca dá pra saber o nome, porque, afinal, são tantos. Andrezinho não havia lido sequer um livro por inteiro. Só alguma parte ou outra. O menino se achava esperto. Do tipo que colava na escola. As histórias boas é que não colavam nele. Sonhava vez por outra que era enforcado pela letra G. Arriscava não escrever nada na vida com a letra G. Achava que o F parecia o T maltratado e o T parecia uma espada quebrada. Outro dia sonhou que o P era um picolé derretendo. E se metia a acordar com medo dos livros. No último dia antes das férias meteu-se a dormir de cabeça molhada. Sonhou com o livro "A cadeira das verdades". Viu-se com 44 anos, velhote, magro e barrigudo, solitário e pobre. Na sua casa tinha quase nada. Nao tinha palmeira nem cadeira. E trabalhava na limpeza de uma biblioteca. Não tinha criança e nem mãe. E nem tinha beleza. Tinha moleza. E era mole demais pra ler. E queria ler demais. Um livro inteiro. E foi lá saber que a cadeira que lhe faltou foi aquela que dizia verdades. As cadeiras nos acomodam demais. Se falassem um pouco Andrezinho saberia que ficar sentado demais machuca os ossos, causa barriga e quebra, mais cedo ou mais tarde, a coitada da cadeira. Afinal, a cadeira que fala perde tempo demais para poder andar. Andrezinho acordou e leu de uma vez só o livro. Foram as férias mais animadas da vida dele.

segunda-feira, abril 26, 2010

Retrato Falado

Pediram pro meu coração fazer o retrato falado do criminoso culpado pelo seu estado de choque. O desenho saiu a cara dela. Ela é uma tomada que dá choque. O estado de graça esvaiu. Trataram de mandar meu coração para o tratamento. Marcaram para as oito da manhã de uma segunda-feira executiva. Quem é executado é meu coração em pleno engarrafamento de início de semana do fim do mês.
O doutor tratou de não tratar do retrato falado. Era um trato entre médico de paciente. Era a falta de paciência. Era a ausência da ausência. Dizia ele, acreditar no amor é um atrevimento caríssimo. É daquele tipo de risco não calculado. Aposta no cavalo que dá zebra. E dando zebra você não sabe que bicho vai dar sua vida.
E seguiu, o doutor, falando que não há como acreditar que uma pessoa complete a outra. É responsabilidade demais, minha gente. E, olhando bem nos olhos do coração, perguntou se ele sente algum pedaço dele mesmo vazio para que alguém com tantos defeitos e qualidade que as pessoas normais tem pode, sim, ser a completude de outro coração. Não. Nenhuma pessoa pode ser a base da outra. Imagine só se o coração alheio é a base da sua vida. Esse coração alheio deve ser muito forte por ter que cuidar da própria vida além da vida do outro.
O coração saiu alcoolizado. Além das palavras era servido entre um conselho e outro doses de vodka. O coração queria ser comido em algum churrasco da alta sociedade. O coração queria deixar de ser símbolo do romantismo pra virar símbolo sexual dos ateus.
O amor existe. Mas o coração fez teu retrato falado e andam te perseguindo por aí. Trate de se entregar. E entregue-se por inteiro. Por inteiro se faz a verdade.

sexta-feira, abril 23, 2010

Com os cotovelos enterrados

Chorava de soluçar. Não era nem o choro dos campeões, nem dos justos, nem dos alegres. Já misturava a lágrima no chão com a poeira invisível. Formava aquela sujeira de chão de supermercado. Sentado naquela sala branca, cotovelos enterrados na divisoria das coxas com os joelhos. Mãos abraçando o rosto, olhos escondidos, úmidos. E um rangido fino e distante. A médica aproximou-se em mais dóis passos curtos e afagou a nuca do homem. Disse-lhe ter feito tudo certo. Os pais e os médicos.

- Minha dor é maior que da minha esposa. Porque ela gerou a minha filha, teve contato, sentiu a barriga mexer e teve alguma resposta ao carinho dado. Eu só toquei na barriga, ninei o umbigo. Amei sem ver, ouvir e sentir.

Seguiram em silêncio até uma sala separada. Ele viu a filha, pegou-a no colo e deu muitos beijos. Beijou-a por um pouco mais de meia hora. E a médica chorou junto, discretamente. Era o fim do primeiro e único dia na vida de pai e filha. Certeza que se encontrariam outra vez.

domingo, abril 18, 2010

De volta pro futuro do presente

Só podia ter bebido mais que a conta permitia. Ou, de repente, levou alguma pancada na cabeça. Ou até mesmo drogas, sabe-se lá. Era o Marty McFly, o que ninguém chama de franguinho. Ele corria pelas ruas do Rio de Janeiro num domingo a tarde. Claro que teria de ser domingo a tarde. Cidade vazia. Ninguém reconheceria. Ele saiu com uma jaqueta vermelha, calça jeans bem surrada e tênis maior que os pés, branco. Parecia vislumbrado e assustado. Corria pela Vieira Souto olhando fixamente para o Pão de Açucar. Corri atrás. Antes de atravessar a rua parou ao lado de uma mulher. Ela parecia um bicho pra ele. E os carros, pareciam normais. O ouvi comentar que "achava que em 2010 os carros voavam". Voam baixo, meu amigo. O ouvi comentar ser estranho demais ver meninas com meninas e meninos com meninos. "É só no Brasil isso?". Não Marty, é no mundo inteiro. Ele riu-se dos cabelos esmagados na cabeça, das pessoas todas furadas no nariz, na barriga. "São todos punks?". Perguntou-se porque as pessoas falavam sozinhas. É o celular, rapaz. Ninguém vive sem, hoje em dia. Hill Valley de 1985 é muito parecida com isso aqui. Os carros, as pessoas com calças apertadas e de cano fino. Muitas cores vivas nas roupas. Tem até fliperama, toca Michael Jackson ainda. Aliás, ainda toca Rolling Stones, U2, Elton John e Madonna. Marty achou o que procurava. O filho Marty Júnior, com 21 anos, visitava a cidade em férias e estava prestes a ser baleado por um assaltante. Seria na praia de Ipanema, posto 8. Cheguei ao lado e chamei-o de franguinho. "Ninguém...me chama...de...franguinho". "Eu sei, Marty. É só brincadeira. Eu vejo seu filho comendo queijo coalho daqui. Ali, de rosa". Marty não pareceu gostar da idéia do filho usar rosa. "E digo mais, Marty. Ele está com o Biff Júnior, que está de rosa também". McFly rolou pela areia, tropeçou em duas mulheres machos até uma posição que conseguisse ouvir o que conversavam. Ele ouviu o filho dizer que fugiria, sim, com Biff desde que fosse pra sumir da vista dos pais conservadores. E inventaram que McFly Júnior havia sido assassinado.
Dr. Brown apareceu estupefado. Viu a cena. Puxou Marty pela jaqueta e arrastou-o até um beco onde estava o DeLorean na sua versão em trêm.
- Vamos voltar, Marty. Ainda há como educar os filhos. E ainda temos que pegar um trânsito infernal daqui até a Central do Brasil, que é onde eu tive que parar o Trem sem levantar suspeitas.
- Não, Doutor. Vamos voltar. Eu vou me reeducar como pai. Vou aceitar o que ele tiver de ser sem que precise fugir de mim.
- Então vamos logo. Antes que chova. Ouvi falar que aqui no Rio quando chove nada vai pelo ralo.
Eu não devo ter bebido. Devo ter injetado alguma coisa. Ou devo ter começado a fazer a festa da licença poética.

quinta-feira, abril 15, 2010

Discordância

Mas tá complicado.
Eu descomplico.
Mas tá um dia chato, nublado.
Eu invento piada, faço sol.
Mas tá tudo tão caro.
Eu pago.
Mas eu não quero que pague.
Não vai ficar me devendo nada.
Mesmo assim vou dever.
Eu não cobrarei.
Mas eu quero fazer algo.
Eu faço contigo.
Mas eu não sei o quê.
Eu te digo. Praia, trilha, cinema, clube, televisão.
Mas eu quero algo diferente.
Planetário, guerra de travesseiro, museu, penetra de festa de quinze anos?
Eu tenho medo.
Medo de quê?
De não gostar.
É só tentar.
Melhor não.
Então...
O quê?
Vai se foder.

sexta-feira, abril 09, 2010

Carnavalesco

O carnaval é a época do ano em que se abre um enorme adendo e se joga tudo de absurdo entre aspas. Sabe o momento que o texto vai se desenvolvendo e criando um vínculo até vicioso com cada palavra somada? Tem algum momento que usamos da citação para abrilhantar. Uns dizem que é covardia, falta de ousadia de quem não tem palavras próprias e cisma em usar as palavras dos outros. Já outros, como eu, teorizam sobre o não nacionalismo das palavras. Afinal, se lançam poeira no ar, o seu destino e seu dono já são rapazes desconhecidos. E o carnaval nada mais é que um parêntese permissivo. O patrão vira piranha; a santa vira madre; a cocada vira acarajé; o vovô vira neném; o repórter vira tímido; a funkeira não muda em nada; e o micareteiro entra em êxtase. O roubo vira brincadeira; a safadeza vira piada; a mulher acompanhada vira alvo. O engarrafamento vira bloco. A fila vira festa. A calçada vira arquibancada e a rua vira avenida para desfile. Dizem que o ano começa na quarta-feira de cinzas. Acho que o ano termina na quinta-feira roxa, desbotada, crioula, megalomaníaca e infantil. Mesmo assim não há como não gostar. O carnaval é o amor em escala maior onde tudo perde a razão e o sentido único é ser feliz.

quarta-feira, abril 07, 2010

Filme B

Abria a porta da casa e deparava com aquele branco belo e triste. Tinha vontade de desistir. Podia mas não devia. Custou a chegar. Era ganhar ou ganhar. Sonhava voltar para o Brasil em dois anos. Só queria juntar dinheiro e voltar. Depois da morte do marido não fazia sentido continuar naquele lugar. Ajeitava então a luva e o cachecol e saía de fininho, cabeça baixa para cortar o vento da cara. Pulava de tudo até chegar ao bar. Não dizia nada além do que precisava. E não precisava dizer nada. Era só limpar e limpar. Limpava o salão, a calçada, o banheiro e a cozinha. Era essa a ordem. Pegava o esfregão, sacudia, jogava o lixo no latão dos fundos e cantarolava pra dentro músicas que a fazia lembrar do calor, dos amigos. Saía lá pras duas horas da manhã. Caminhava os dois quarteirões de volta. Comia algo quente, ia dormir pra acorda só às duas da tarde do dia seguinte.
A seis meses a rotina não mudara. No máximo passaram a dar abraços silenciosos da mulher quieta. Não era feia. Ela se achava desinteressante. Nem todos concordavam. Jhon, um galês com cara de caminhoneiro de filmes B da Escócia, era um bom homem. Contava histórias da segunda guerra. Noemi era panamenha e falava aquele espanhol sujo até quando era silêncio. Manolo, cubano e não-fumante. Gomez, americano descendente de cubanos. Yoko, Koto e Gushev. Japoneses e russo, respectivamente. Todos sabiam o que Maria era. E por isso escoltavam, cada um em um dia, o retorno dela para casa. Era perigoso. As ruas de Tóquio já não eram tão seguras. Morava perto do Mc Donalds local, ao lado do Hotel Sunroute Plaza Shinjuku.
O Hotel para as classes mais baixas abrigava tipos de todos os cheiros, caras e nações.
Era dia dia de final do campeonato nacional de Baseball. É o esporte ocidental mais popular depois do sumô e do judô. Dessa vez ninguém escoltou Maria até sua casa. Os Yomiuri Giants perderam vergonhosamente. Maria, que não é de torcer, sequer entendia disso. Atravessava debaixo da fina chuva um grupo de torcedores revoltados. Paravam Maria. Antes que esqueça, o segredo de Maria era não saber falar. Era surda-muda. Os homens pergutaram as horas. Ela não respondeu. Pararam-na no braço. Deram tapas nos ombros. E nada de responder. Maria, assustada e estática, se soubesse falar talvez não falaria. Aliás, podia até ter dito que não tinha time e nem tinha culpa pela derrota. Não usava relógios. Não gostava de ver a hora passar. E náo mais passou. Matsui é o nome dele.

domingo, abril 04, 2010

Coisa de Coelho

A mãe acordou as seis da manhã. O pai, enrolava de um lado pro outro. Acordou meia hora depois. O armário do quarto era alto o suficiente pra ninguém alcançar nem em cima da cadeira. A escada estava quebrada. Ela teve de subir nas costas do marido para pegar os ovos de páscoa escondidos. Pegou um, dois, três e umas duas caixas de bombom. Na hora de descer, caiu toda errada em cima do moço. Não se machucaram. Mas quebraram o abajour. Pequeno prejuízo. Ela reclamou pra caramba. Ele engoliu tudo com um beijo apaixonado e um bom dia. Claro, ela podia ter acordado as crianças.
Foram ao quarto dos meninos e nada de anormal. Deitados, soneca pura. Armaram os esconderijos dos ovos. Puseram patas de coelho pela casa. Era tradição. E puseram um bilhete ao lado de cada cama. Puseram uma filmadora na sala que era onde estavam os ovos. Saíram para a missa. Pecadores são assim.
À noite viram o quanto foram mais crianças que os filhos. No vídeo, escondidos, viram que as crianças simplesmente sabiam onde estavam os ovos. E riam à vontade dos pais. Achavam graça e ternura no gesto deles. Mas se riam demais da tentativa.
Pais e filhos nada disseram um ao outro. Só riam. E riam demais. Todos sabiam da verdade. Mas o coelho pediu pra ninguém estragar a magia.

sábado, abril 03, 2010

Terapia Animal

A formiga foi internada numa clínica de reabilitação para furtadores de pique-nique.
A abelha tá devendo imposto pela produção de mel.
O beija-flor levou um tapa da flor que beijou.
A bananeira denunciou o macaco por uso indevido de suas bananas.
A borboleta entrou em depressão. Afinal, não quer ser só mais uma asinha bonitinha.
A aranha cobrou direitos autorais à Warner pelos filmes de herói.
O besouro, brasileiro e malandro, subornou os produtores do filme de seu nome.
O elefante processou o tratador que o chamou de "gordo".
A amendoeira quer ganhar algo por produzir oxigênio.
Os ventos querem mais que reconhecimento por criar ondas para surfistas, brisas para os velejadores, direção para as birutas e energia para as usinas aeólicas.
Os rios prenderam as correntes e fizeram greve na porta da usina hidrelétrica.
O papagaio cobra por sua modalidade de comédia "Stand-up".
A leoa está fazendo terapia.
A galinha e o galo que há muito tempo não se bicam estão a algum tempo fazendo terapia de casal.
E esse cachorro que vos escreve que não é bobo nem nada vai procurar um filé. Tô cansado de roer o osso.

quinta-feira, março 25, 2010

Nos tempos

Nos tempos da vovózinha, além das ciroulas beges e do telegrama, as histórias de amor duravam mais que noventa minutos. Talvez porque não havia a chance de poder escolher o melhor produto na prateleira recheada de homens e mulheres. Ou porque o cupido era mais generoso e paciente. O mundo era menor. A expectativa de vida biológica era menor. Mas a vida vivida era infinitamente maior.
No meu tempo, da webcam e do tênis com amortecedor, o excesso de opções atrapalha na hora da decisão. Demoramos a escolher e, com tanta dúvida, estamos correndo risco de escolher mal. Ou é porque o cupido está ocupado demais navegando na internet, tirando fotos dos melhores momentos para pôr no orkut. O mundo é grande pra caramba e está cada vez mais estreito. Morremos mais tarde e vivemos tão pouco. Hoje as histórias de amor duram um pouco mais que dez minutos. De repente alguma história de amor começou e terminou antes que você terminasse de ler isto.

sexta-feira, março 19, 2010

Não sei se espero ou se corro

Não sei se espero ou se corro. É como tentar advinhar se meu trem que não usa trilhos vai passar por aqui ou por lá. É como querer tirar fotografia de um raio esporádico no meio de uma tempestade. Não sei por onde ir no meio desse nevoeiro momesco. E é um nevoeiro quente. Traz uma gota de suor saindo do pescoço, caindo por entre os peitos. Aquece o pulmão. Causa tosse esbaforida. Não sei se se espero ou se corro. Se bato ou mordo. Se é boné ou gorro. Se é telegrama ou twitter. Se é batom ou glitter.
Não sei se fico mais um pouquinho ou se começo a dieta de você. É como tentar chutar uma mosca dentro de um quarto escuro. É como querer supor alguma coisa sobre o próximo samba. Não sei se como ou se bebo. Se é intervalo ou recreio. Se é a marcha engrenada ou o freio. Se é o leme ou um pombo correio.
Não sei se é direito ou de esquerda. Se você sorriu pra mim ou para o rapaz ao meu lado. Se diz não querendo dizer sim. Se diz tchau querendo dizer vem. Ou se realmente eu devo correr, deitar em outra cama, fazer conchinha com uma pessoa menor ou maior, beliscar o bico do seio de uma menina que nem sabe a que veio. Se é isso, pois bem, eu corro.
Mas se for para ficar, eu morro. Morro de amor por você. E como eu amo!

segunda-feira, março 15, 2010

Ao sair do quarto

Virei pro lado e traguei o que seria o último perfume saboroso da pequena. Levantou com aquele vestido dos céus, uma divindade da beleza, uma roupa de dormir sensualmente elegante com corações vermelhos e predominância branca. O tal vestido começava com duas finas alças, abraçava um decote que tentava sem sucesso algum ser singelo e percorria até a metade das coxas num tecido liso, escorregadio, excitante. Ela esteve numa das melhores noites. E nunca esteve tão distante. Por isso a noite foi distinta. Os homens olham e sentem muito o corpo e um pouco a alma. As mulheres sentem um pouco mais a alma que o corpo. Ambos sentem. Eu senti um branco absurdo nos olhos dela. Pelo que me recordo passava alguma coisa na TV que eu nem sei, uma briga de ogros divergentes sobre futebol no bar lá debaixo, uns uivos do Cazé, meu papagaio de tufos amarelos, e uns arrastões de móveis no apartamento do vizinho de cima. E ela tocou o celular, interfone, capainha, meus peitos, meu dito cujo, minhas coxas, minha língua, minhas covas da virilha, minha cama, e, por fim, tocou com o lado de fora da mão a maça do meu rosto.
Conheci muitas coisas que disseram um bom oi. Aquele sorriso diferente no meio de um monte de gente. A primeira vez que a amiga mais descarada ficou ruborizada de vergonha. Quando me pediram telefone, quando ofereceram o ombro, quando ofereceram uma noite longe, quando simplesmente optaram pelo fio vermelho. Tem certos momentos que descobrimos como boas entradas em nossas vidas. E existem momentos de despedidas tão singelos quanto. Uma quantidade de chamadas não atendidas no telefone, um não convite para um evento especial, o sumiço em si ou a indiferença entre o bom dia e o boa tarde. O branco vazio esfumaçado dos olhos dela ao sair arrumada do banheiro, cançando as sandálias verde-ouro, e, assim mesmo sem qualquer espécie de adeus, sair escorregadia pela porta marrom, envernizada e eterna da saudade. Saudade da minha alma, do meu coração. Pois, lhes digo, ao sair apague a luz, feche a porta e diga tchau porque, pra quem fica, há sempre uma esperança de que ninguém se foi de vez.

segunda-feira, março 08, 2010

Apenas um oito de março

Não me venha dizer que vai comemorar com aquela música do Neguinho da Beija-Flor que é só mulher e mulher e mulher. Mulher é mais. E menos, também. É rascunho definitivo; é peito, despeito, respeito, silicone natural, câncer de mama; é madura quando verde, imatura de rosa, antes dos dez anos; é pai, guerreira e soldado; é muito mais macho que muito homem; é capaz de matar por amor e, ao final disso, se preocupar com a unha e o cabelo.
E só por um dia que nos vimos diante disso. De uma espécie não exatamente evoluída, mas diferente. É completamente alheia a tudo que há no universo. Por isso nós, homens, mulheres, meninos, meninas e outros, nos apaixonamos perdidamente pela mãe, pela professora, pela pediatra, pela apresentadora de TV, pela prima, pela vizinha, pela melhor amiga, pela mãe da melhor amiga, por uma mão lisinha, por sua cunhada, por sua filha, pela melhor amiga da sua filha, pela mulher que te atende, pela mulher que não te entende.
Tem mulher de mentira. E tem homem que gosta disso. Tem homem que quer ser desse outro planeta também e, de alguma forma estranha, se torna uma. Tem homem que só por hora se torna uma. Só por uma noite, por um carnaval. Mas mulher não se imita, não se copia. Mas o bom mesmo é a mulher de verdade. Aquele cheiro de pele que nenhum perfume consegue igualar. Aquelas curvas que até a mulher mais reta possui. Aquele poder que tem no ventre e ninguém mais tem.
É a mulher que discute sozinha; que muda os rumos de uma guerra; que vence sempre a guerra dos sexos; que derruba imperadores; que inspira poemas, romances, músicas e tem criado um dia só pra ela. Só não concordo que seja em apenas um oito de março...

quinta-feira, março 04, 2010

Ciúmes de Júlia

O ciúme é um dos sentimentos mais mortais do universo. É uma síndrome passiva que nos é avassaladora em certo momento da vida. Bebemos do vírus do ciúme assim que comemos da fruta do amor. É como um alimento cítrico que traz o bom do conteúdo e o caldinho discreto e amargo. Provamos do bom do amor ingerindo também o hospedeiro ciúmis doentius. Nas palavras de um pensador caquético quem ama sente ciúmes. O biólogo cruzou a esquina berrando que o ciúme para o amor é como aquele cardume de peixinhos seguindo a baleia jubarte, se alimentando dos restos do que o mamífero maior come. O médico chama de mal de amor, como os de Parkinson. O sociólogo chama de mazela. Que seja. Não chamo de nada. Não o convido para ficar tão perto. Porque ciúme é uma faca afiada demais, um revolver ultrajante e fatal. É a síncope sintética de um metal indestrutível. É meu veneno, minha água. É onde eu e você bebemos como termômetro para se saber se há amor.
Júlia, uma mulher rodriguiana. Nelson diria que ela era de parar o trânsito, fechar a rua sem prazo de abertura. Claro, seios fartos, postura altiva, criatura dos infernos mais prazerosos da libido masculina e, até, feminina. Casada, de certo. Decotada, de errado. Provocava incovenientemente os maiores sonhos até nos amigos. Também pudera. Além de tudo possuía um quê de criança pedindo colo, uma voz sussurrante, um alvoroço no olhar amêndoa que, obviamente, ela mesma sabia ser capaz de tudo. E conseguia emprego, facilidades, passar a frente em filas e até descontos voluptuosos. E, como se não bastasse, dizia não saber entender quando um homem possuía segundas intenções e se algum convite era mais que um simples convite. Essa era Júlia. Que homem suportaria tamanha sensação de insinuante desconfiança? E na cama, como todas as mulheres, convencia tanto no orgasmo que até disso o pobre marido desconfiava. Felicidade e esmola demais o santo, mesmo que seja do pau bem oco, desconfia. Começou a ver mensagens no celular, a ligar para o trabalho dela, a andar pelos cantos. E via coisas suspeitas mesmo. Um amigo mais presente. Um carinho mais forte e qualquer palavra além de bom dia seria crime. E foi.
O marido, como os maridos de Nelson, resolveu tratar uma rodriguiana da forma que merece. Tratou de despi-la no meio da rua, na frente do bar, leu cada mensagem do celular e o e-mail tosco de um admirador. Não esperou que fosse inverdade. Era verdade para ele mesmo que fosse mentira. Após a leitura, sem sabatinar a mulher, abandonou a praça, a rua, o público e a mulher nua e talvez adúltera. Nunca se soube, como nos orgamos múltiplos o que é falsidade e o que é verdade, se ela realmente o traiu. Como a primeira frase diz, o ciúme é um dos sentimentos mais mortais do universo, meu caro. Saiba degustá-lo.

sábado, fevereiro 20, 2010

Conto da Desprincesa

"Bem que poderia ser como nos contos de fadas", dizia ela toda vez que se decepcionava com um homem. Ora bolas murchas. Existem príncipes para qualquer mulher? Plebéia não tem príncipe cativo. E foi o que tentei falar a ela. Feia ela não era. A propósito, era e ainda é muito bonita. Só não sabia que era tanto. E nem se fazia esplendorosa como devia de ser. "Já sei. Então fará o curso de princesa", disse a ela que, por sua vez, concordou com algumas ressalvas.
A cada dia chegava em casa mais animada. No primeiro achou graça da situação. No segundo já parecia insistir na graça. Da segunda semana em diante já mudava o andar, o sorriso aparecia mais brilhante e os olhos ousavam mais. Ao mesmo tempo que uma doçura ocupava todos os trejeitos como se estivesse avisando que esteve sempre por ali adormecido. Mudaram as roupas, o penteado e o bronzeado. Sabia falar bem e até pouco quando devia de ser. Muito falava quando devia de ter. E teria muito o que falar. Reprovou em alguns testes iniciais por resistir a idéia do curso. Depois, denotava um ar de pocahontas quando cantarolava. E como aprendeu a cantar. Sorria como um brinde à quem inventou essa coisa de ser feliz. Aliás, essa moda de mostrar os dentes alinhadamente entre lábios macios é de uma singularidade impressionante. E foi o que de melhor ela aprendeu. Conversou com as plantas e os animais a partir dali. Chamava a natureza de mãe e sua mãe, de fato, coitada, era mais urbana que os próprios prédios cinzentos. Criou força, criou tolerância e um talento enorme para ver e ser vista. Até que, enfim, o curso terminou.
Surgiu ao primeiro domingo com um diploma na mão. "Agora sou princesa", dizia ela com o papel esticado à minha frente. "Você sempre foi princesa, minha filha". Ela sorriu como as melhores princesas devem sorrir. Mas não sorria satisfeita.
Tempos depois voltou e resmungou: "Eu queria ser princesa. Agora eu quero ser mulher. Ser princesa é muito irreal e nenhum homem me quer. Sabe porquê? Porque não existem príncipes por aí. Só existem homens apaixonantes com roupas normais, com cabelos normais, um pouco mais magros ou mais gordinhos que o normal. Gostam um pouco mais ou um pouco menos de discutir a relação, de futebol aos domingos e de ver comédias românticas. Mas são homens. Príncipes seriam sem graça alguma". Das duas, uma: ou apaixone-se por um homem e aceite-o como ele será ou mande-o para um curso de príncipe. Mas, cuidado, todo príncipe tem a armadura e o cavalo branco que lhe convém.

sexta-feira, fevereiro 12, 2010

Saia comigo

Porque nao abandonar
Sair, um chá surdo
Um café miudo
Um sorvete escorregadio
Num pedaço de beijinho.

Sair do sempre
Ir pro de repente
Cantar um poema desses
Fazer coisas loucas
Indecentes

Porque nao sair?
Ficar ai, assim
Meio aquém
Longe demais
Esperando dormir

Vamos daqui
Além das palavras
Porque ja confessei
Que nao é pouco
Que te amei.

Mas vale sair.

terça-feira, fevereiro 02, 2010

Orgie

Terminei o meu discurso e todo mundo começou a se beijar. Primeiro todos entreolharam-se suavemente violentos. Gelidamente fogosos. Sabiamente simpáticos. E começaram, assim mesmo como você imagina, sem cerimônia nenhuma, a se beijar. E era flor beijando espinho. Era espiga beijando o milho. Negra beijando sapo. Nerd beijando tela. Ela beijando ela, vê se pode.
Foi só dar o aval que ninguém mais fez mal. Foi o bem beijando o nenem. A atenção beijando o aquém. O pobre beijando notas e notas de cem. E nem vem, tristeza, que aqui não tem.
Abaixei os olhos em pormenores. E, olha aqui eu beijando o microfone, beijando a carta sem nome e beijando o rosto da mulher que estava chorando sem homem. O dedo beijando o mi sustenido. O relógio de bem com o tempo. O dente beijando a lingua, a lingua beijando os lábios, e os lábios beijando os seus lábios. O príncipe beijando o cavalo branco. E o branco beijando os olhos quando olho pro céu assim que do breu saio.
Não acredito. É o Lula beijando o Sarney ali na primeira fila? É o Eurico beijando o escudo do Flamengo? O assaltante beijando o juiz? O assaltado beijando o próprio nariz? A criança beijando suas próprias agulhas? O Serra beijando Aécio que beijou Dilma que beijou Marina. É o Haiti beijando a sorte? É o mendigo beijando o Porche? A pedófila beijando o coroa? Os olímpicos beijando o Rio de Janeiro? O hipócrita beijando a consciência? Não é conscidência que o Brasil beije devagarzinho a face do progresso.
A médica linda beijando a carreira. O mecânico de branco beijando a riqueza. O ator beijando o desenho animado. O tranbiqueiro desanimado beijando o juízo afiado. O apostador beijando a falta de ousadia; o magnata beijando a sua tia; o delegado mandando beijo pra quem fugia; o palhaço beijando a lágrima de quem se ria.
Depois disso tudo corri a beijar também. Beijei a diferença no meio dos normais; beijei os maiores pecados do meu pai; beijei a irmã da irmã da cunhada; beijei depois do banho dela a toalha molhada; beijei o salgado no meio da cocada; beijei até a graça no meio da piada; beijei a insensatez pela primeira vez; beijei o meu pé depois de velho; beijei uma raspinha da dividida; beijei a calcinha da amiga na frente da própria; só não beijei a danada da apaixonada. Mas me beijaram o pescoço, o esposo, o tesouro, o bondoso, o horroroso, o teimoso. Me beijaram a face, devagar, extendendo o tempo, esticando a mão, fechando os olhos, recordando você. Vá entender.