quarta-feira, agosto 06, 2014

CONTO DO RIO PÉRFIDO - CAPÍTULO II


A queda se deu lá pelas treze horas de terça-feira, 29 de Julho. O Cristo Redentor teria tombado para frente, beijando todo o maciço do Corcovado em direção ao Humaitá, com sede de água do mar, como que se estivesse com uma absurda vontade de saltar do caos de um trem Japeri lotado, de um metrô da linha dois entupido. Mas o Redentor não frequenta a linha dois do metrô, tampouco o ramal Japeri. O fato é que ele teria mergulhado ou apenas tentado esconder o rosto. O pescador franzino da boca da Barra que comentava lá pelas bandas dele. Ele realmente não viu, mas acredita-se que foi exatamente assim. Não viu assim como quase todo mundo. A notícia da queda transpôs outra notícia igualmente preocupante: entre os fins de julho e o início de agosto de 2014, logo após a Copa, em uma ressaca descomunal a cidade do Rio de Janeiro passa os dias e as noites tomada de um forte nevoeiro. Nada se vê na Guanabara.

Os pensamentos começaram a decantar no meio de um quase breu. O menino localizava-se mais no tempo e do que no espaço. Talvez ajudasse a entender onde estavam. Mas não sabiam da tal queda que o mundo inteiro deliciava por debater. Um sadismo midiático. Um repórter chegou a lamentar não poder entrevistar a estátua.
- Cristo Redentor! – exclamou Jose Patrício.
- Qual seu nome?
- Que saco, velho! Que saco!
Irritou-se com a repetição. Soltou um grito e palavrões aos montes. Tudo isso de costas e em direção a uma grande parede de pedras. Tudo isso até esgotar o excesso de raiva. José Patrício é do tipo que guarda mágoas possivelmente por anos. Ou as mágoas dele são do tipo que o guardam por anos. Respirou fundo, virou-se. O velho já se apressava em dizer que eles deveriam sair dali. Apressou-se também em perguntar o nome do garoto.
- Estou irritado com o senhor, não vê?
- Vejo. Mas não sei o motivo. Vai se irritar sozinho ou quer dividir comigo? Pelo que eu me recordo não fiz nada a você. Acabo de te ver aí olhando pra parede, rapaz. Até achei coisa nova de adolescente. Sei lá. Só vim te perguntar onde estamos e onde está Jorginho. Você conhece o Jorginho? Ele é magro, alto, cabelos grisalhos, tem uma mancha no braço esquerdo, tem também...
- Qual o nome do senhor mesmo?
- Morialdo. José Morialdo.
- Seu Morialdo, sente alguma dor? Algum machucado?
O velho nada sentia. Nenhum arranhão. Nenhuma avaria. Lataria intacta como se estivesse ainda em 1973. Não fossem os cabelos brancos ninguém chamaria de velho. Aliás, a modernidade retrógrada da adolescência não permite que não se chame um grisalho de velho. Mas, pera lá, um jovem com feridas espalhadas pelo corpo e um velho sem lesões? José Patrício não quis alongar e foi prático.
- Vamos procurar uma saída.

Imaginava-se o prefeito Eduardo Paes lançando desculpas ou justificativas em diversos meios de comunicação. Imaginava-se o mesmo do governador Sérgio Cabral. Esse Rio de Janeiro da atualidade é pérfido. Não era como no caso das vigas da perimetral que haviam sumido misteriosamente e que poderiam ser ignoradas até que a estação climática mudasse e cada carioca esquecesse. E olhe que alguns não esqueceram, felizmente. O Cristo Redentor não era visto mais lá no topo do Corcovado. Nenhum governante apareceu. O corretor imobiliário caiu no choro por não poder mais vender aquele conjugado na Glória com vista lateral da vista parcial para o Cristo já imparcial. A mulher amargurada que trabalhava como acompanhante de uma idosa em Copacabana pediu um milagre, uma graça divina, algum sinal para que pudesse acreditar que Deus existe. . Recebeu um aumento de salário. Chamou de milagre o que a patroa chamou de dissídio. Um homem passou gritando pelas ruas vazias que “A natureza está revoltada. Um tigre atacou um menino no Paraná! O Cristo Redentor tomba no Rio! É o apocalipse! É o fim dos tempos!”. A tropa de elite assumiu sem qualquer cerimônia as funções dos bombeiros e embrenharam-se na floresta. O que começa errado talvez termine errado. O que começa absurdamente torto termina pior ainda.

- Me diz uma coisa, moleque. Acredita em Deus?
- Sou ateu.
- Ateu daqueles que praticam? Olha lá. Não minta para mim.
- Não estou mentindo. Ateu de ateu mesmo.
Enrugou a testa desenhando interrogações no ar. Nem quis insistir muito. Descansavam da tentativa da retirada de umas pedras que se ofereciam como possível rota de saída. Através delas que alguns feixes de luz arrebentavam dentro da gruta. Nenhuma novidade.
- E o senhor, acredita em Deus?
- Há dúvida neste ateu! – e sorriu.
- Não. Só quero saber.
- Minhas maiores desilusões e meus maiores desamores foram todos envolvidos por religião. A partir daí acreditei em Deus. Ainda está em tempo.
- Não vou mudar.
- Quando seu calo apertar e sua mente não aguentar você irá gritar alguns palavrões e pedirá por Deus. Não sei se exatamente nesta ordem.
O menino não quis dar-se por vencido. E na falta de argumentos à altura – é sabido que a disputa sempre será desigual – atacou de qualquer forma o alvo da vez.
- Duvido muito.
- Se quiser que te agrade eu te digo uma coisa que penso de Deus e se sorrir é porque acredita nEle. Se não reagir é porque está convicto do seu ateísmo.
- Vamos lá. Manda ver.
- Deus é sádico. Ele gosta de nos ver sofrer. Caso contrário, ofereceríamos prazeres e não sofrimentos. As promessas são subidas de joelho em enormes escadarias, exaustão de orações e tantas outras coisas. Ninguém promete um recital de poesia ou uma suave canção para Deus.
O moleque tentou congelar as reações. Por fim sorriu.
- Vi um sorriso. Não se preocupe. Eu também menti. Essa teoria não é minha. É do Rubem Alves.


O nevoeiro persiste. Nada se vê na Guanabara.

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