A queda se deu lá pelas treze horas de terça-feira, 29 de
Julho. O Cristo Redentor teria tombado para frente, beijando todo o maciço do
Corcovado em direção ao Humaitá, com sede de água do mar, como que se estivesse
com uma absurda vontade de saltar do caos de um trem Japeri lotado, de um metrô
da linha dois entupido. Mas o Redentor não frequenta a linha dois do metrô,
tampouco o ramal Japeri. O fato é que ele teria mergulhado ou apenas tentado
esconder o rosto. O pescador franzino da boca da Barra que comentava lá pelas
bandas dele. Ele realmente não viu, mas acredita-se que foi exatamente assim.
Não viu assim como quase todo mundo. A notícia da queda transpôs outra notícia
igualmente preocupante: entre os fins de julho e o início de agosto de 2014,
logo após a Copa, em uma ressaca descomunal a cidade do Rio de Janeiro passa os
dias e as noites tomada de um forte nevoeiro. Nada se vê na Guanabara.
Os pensamentos começaram a decantar no meio de um quase breu.
O menino localizava-se mais no tempo e do que no espaço. Talvez ajudasse a
entender onde estavam. Mas não sabiam da tal queda que o mundo inteiro
deliciava por debater. Um sadismo midiático. Um repórter chegou a lamentar não
poder entrevistar a estátua.
- Cristo Redentor! – exclamou Jose Patrício.
- Qual seu nome?
- Que saco, velho! Que saco!
Irritou-se com a repetição. Soltou um grito e palavrões aos
montes. Tudo isso de costas e em direção a uma grande parede de pedras. Tudo
isso até esgotar o excesso de raiva. José Patrício é do tipo que guarda mágoas
possivelmente por anos. Ou as mágoas dele são do tipo que o guardam por anos.
Respirou fundo, virou-se. O velho já se apressava em dizer que eles deveriam
sair dali. Apressou-se também em perguntar o nome do garoto.
- Estou irritado com o senhor, não vê?
- Vejo. Mas não sei o motivo. Vai se irritar sozinho ou quer
dividir comigo? Pelo que eu me recordo não fiz nada a você. Acabo de te ver aí
olhando pra parede, rapaz. Até achei coisa nova de adolescente. Sei lá. Só vim
te perguntar onde estamos e onde está Jorginho. Você conhece o Jorginho? Ele é
magro, alto, cabelos grisalhos, tem uma mancha no braço esquerdo, tem também...
- Qual o nome do senhor mesmo?
- Morialdo. José Morialdo.
- Seu Morialdo, sente alguma dor? Algum machucado?
O velho nada sentia. Nenhum arranhão. Nenhuma avaria. Lataria
intacta como se estivesse ainda em 1973. Não fossem os cabelos brancos ninguém
chamaria de velho. Aliás, a modernidade retrógrada da adolescência não permite
que não se chame um grisalho de velho. Mas, pera lá, um jovem com feridas
espalhadas pelo corpo e um velho sem lesões? José Patrício não quis alongar e
foi prático.
- Vamos procurar uma saída.
Imaginava-se o prefeito Eduardo Paes lançando desculpas ou
justificativas em diversos meios de comunicação. Imaginava-se o mesmo do
governador Sérgio Cabral. Esse Rio de Janeiro da atualidade é pérfido. Não era
como no caso das vigas da perimetral que haviam sumido misteriosamente e que
poderiam ser ignoradas até que a estação climática mudasse e cada carioca
esquecesse. E olhe que alguns não esqueceram, felizmente. O Cristo Redentor não
era visto mais lá no topo do Corcovado. Nenhum governante apareceu. O corretor
imobiliário caiu no choro por não poder mais vender aquele conjugado na Glória
com vista lateral da vista parcial para o Cristo já imparcial. A mulher
amargurada que trabalhava como acompanhante de uma idosa em Copacabana pediu um
milagre, uma graça divina, algum sinal para que pudesse acreditar que Deus
existe. . Recebeu um aumento de salário. Chamou de milagre o que a patroa
chamou de dissídio. Um homem passou gritando pelas ruas vazias que “A natureza
está revoltada. Um tigre atacou um menino no Paraná! O Cristo Redentor tomba no
Rio! É o apocalipse! É o fim dos tempos!”. A tropa de elite assumiu sem
qualquer cerimônia as funções dos bombeiros e embrenharam-se na floresta. O que
começa errado talvez termine errado. O que começa absurdamente torto termina
pior ainda.
- Me diz uma coisa, moleque. Acredita em Deus?
- Sou ateu.
- Ateu daqueles que praticam? Olha lá. Não minta para mim.
- Não estou mentindo. Ateu de ateu mesmo.
Enrugou a testa desenhando interrogações no ar. Nem quis
insistir muito. Descansavam da tentativa da retirada de umas pedras que se
ofereciam como possível rota de saída. Através delas que alguns feixes de luz
arrebentavam dentro da gruta. Nenhuma novidade.
- E o senhor, acredita em Deus?
- Há dúvida neste ateu! – e sorriu.
- Não. Só quero saber.
- Minhas maiores desilusões e meus maiores desamores foram
todos envolvidos por religião. A partir daí acreditei em Deus. Ainda está em
tempo.
- Não vou mudar.
- Quando seu calo apertar e sua mente não aguentar você irá
gritar alguns palavrões e pedirá por Deus. Não sei se exatamente nesta ordem.
O menino não quis dar-se por vencido. E na falta de
argumentos à altura – é sabido que a disputa sempre será desigual – atacou de
qualquer forma o alvo da vez.
- Duvido muito.
- Se quiser que te agrade eu te digo uma coisa que penso de
Deus e se sorrir é porque acredita nEle. Se não reagir é porque está convicto
do seu ateísmo.
- Vamos lá. Manda ver.
- Deus é sádico. Ele gosta de nos ver sofrer. Caso contrário,
ofereceríamos prazeres e não sofrimentos. As promessas são subidas de joelho em
enormes escadarias, exaustão de orações e tantas outras coisas. Ninguém promete
um recital de poesia ou uma suave canção para Deus.
O moleque tentou congelar as reações. Por fim sorriu.
- Vi um sorriso. Não se preocupe. Eu também menti. Essa
teoria não é minha. É do Rubem Alves.
O nevoeiro persiste. Nada se vê na Guanabara.
Nenhum comentário:
Postar um comentário