Todos ainda comentavam sobre o Cristo Redentor e sua rendição
ao pé do Corcovado. A cidade inteira tomada por uma neblina praticamente
serrana. Se não bastasse o contexto ninguém teria realmente deixado passar
despercebido, sobretudo os cariocas, a previsão do tempo para este dia.
Principalmente, uma previsão certeira. Não apenas começou a chover. Ao cair da
tarde já começava o chuvisco. Lá pelas tantas da noite já alagava a cidade
inteira. Poças e correntezas pelas bandas da baixada fluminense e a tomada de
pessoas que antes ignoravam sua existência. Rios e riachos pelos lados do
Humaitá, pelos cantos da Rua das Laranjeiras, pelos meios do Alto da Boa Vista.
Dentro da gruta já se formava um grande aquário onde os únicos animais eram os
dois homens que já não se entendiam.
- Esse velho aqui não deve aguentar.
E Morialdo seguia falante. Cada vez mais necessitado de um
diálogo para preencher o silêncio e o medo. Cada vez mais cheio de conteúdos.
Citou até Nietzsche.
- Qual seu nome, rapaz?
O velho seguia suas perguntas. Essa deveria ser a pergunta de
número cento e quatorze. Isso considerando somente as sobre o nome do moleque
que já não respondia e até implorava para o Deus – que ele dizia não acreditar –
acabar com aquele mau agouro todo.
- Você está chateado comigo? Não te conheço.
José Patrício considerava Morialdo um companheiro de cela
irritante. A paciência com o esquecimento do velho havia acabado lá pelo meio
da tarde. Morialdo considerava José Patrício um novo neto a cada momento que o
conhecia pela primeira vez, um possível ajudante arremessado pro seu lado, um
braço forte que ele já não tinha. De um lado a suposição de esperança. De outro
lado a sugestão de um peso.
Quarenta e dois anos antes José Morialdo implicava consigo
mesmo. Pegava sempre um papel para espirrar ou tossir e acabava escrevendo. Não
dançava o rock. Não ouvia rádios. Não ia para lanchonetes. Sequer lia
clássicos. Sequer ia aos cinemas. Era apenas trabalhar e escrever. A redação do
jornal o considerava fanático. Não gostava. Considerava-se lunático. Santa
diferença. Os amigos diziam que pelo menos suas crônicas eram boas, muito boas.
Não era possível toda vez sonhar e ter que escrever. Dormia um papel em branco,
acordava assustado todo rabiscado em consciência, de ponta a ponta. Todas as noites.
Todos os sonos. Não era possível. Considerava coisa de doença.
- Escrever é uma maldição.
- Uai. É troça?
- Escrever dói. A cabeça nunca fica vazia. Escrevo para
despachar os pensamentos e parece que cada vez mais atolam, acumulam. Escrevo
mais. Escrevo mais e mais. E mais.
- Reclama de barriga cheia. Aliás, de cabeça cheia. Acaso
queria ser vazio? Pelo menos assim sustenta sua família, seus filhos e netos. Trabalha
esse trem por eles então.
O amigo do sotaque de um canto de Minas estava mais que
certo. Morialdo sabia e mirava as forças na família que crescia. Seus filhos
ainda crianças dariam netos e bisnetos. Sonhava que pelo menos o mais velho
fosse jogador ou médico. Ou médico de jogador.
- Melhor eu ir.
Despediu-se do mineiro. No meio da noite acordou assustado ao
lado da esposa. Não quis acordá-la. Iluminou o papel com seu candeeiro de mesa
e começou a escrever. Não sabia ainda se comédia ou tragédia. Era no Rio de
Janeiro de mais adiante.
Muitos moradores das zonas sul, norte e centro perpetuavam a
estadia em hotéis e motéis da Baixada Fluminense. Chovia mais pra perto do mar
que lá pra perto do pedágio da Dutra. A ironia era as empregadas hospedarem
suas patroas. Com o tempo até poderiam usar as patroas de empregadas e as
empregadas de patroas. Assim como os pedreiros com seus patrões, os motoristas
com seus chefes e as secretárias com suas gerentes. A Baixada é a nova Zona Sul
e a Zona Sul é a velha Baixada. Nesse quesito o velho e o novo fogem dos seus
sentidos. O velho e o novo. O antigo e o contemporâneo. Morialdo e José
Patrício.
- Quer saber de uma coisa? Eu detesto velhos. Todos os
velhos. Inclusive você. No ônibus cheio tenho que levantar pra dar lugar pra
velho. Vou ao banco e minha fila demora muito porque tem atendimento especial
pra velho. Vou ao supermercado e acontece a mesma coisa. Velhos são problemas.
Prefiro morrer cedo a ficar velho. Que você não aguente mesmo.
Uma dos lados da gruta arrebentou com a força da água.
Sobravam alguns metros ainda sem estarem submersos. Ambos em cima de uma rocha
de uns cinco metros de superfície. O nível da água subia com considerável
velocidade. Para frente e para os lados um lago escuro onde horas antes só
havia gruta. Para trás uma parede por onde escorria água.
- Faz alguma coisa, velho.
- Se está escorrendo água por essa parede imagino que exista
um buraco. Uma entrada de água. Uma saída pra nós.
Com a cabeça fez que concordou com o senhor. Certamente a
contragosto. A parede cedeu lentamente e ofereceu uma saída com uma correnteza
mais forte. Um buraco de um metro de diâmetro a cerca de cinco do nível onde
estava. Uma correnteza cada vez mais forte. Folhas, galhos e muita terra também
entravam na gruta por este local.
O combinado foi o moleque subir nas costas do velho e,
estando lá em cima, ajudar a puxar o velho para fora. O nível da água já cobria
até a metade do corpo deles e subia cada vez mais rapidamente. O velho agachou
levemente pressionando as costas contra a rocha abaixo da pequena cratera
aberta pra saída. José Patrício subiu pisando sobre o joelho e depois no ombro
de Morialdo. Esticou o que pôde e não conseguiu alcançar um modo de subir ainda
mais. O nível da água estava quase no pescoço do velho.
Mais um pouco e, enfim, conseguiu agarrar os dedos em um
galho sustentado por algo do lado de fora. Subiu um pouco. O velho já estava
com a água acima da cabeça. Insistia em pôr o rosto mais para fora da água.
Pedia ajuda. Implorava para que José Patrício o puxasse. Passava por sua cabeça
que não conseguiria se salvar se insistisse em puxar o velho.
- Velho?
- Me ajuda.
- Acha que já viveu de tudo nessa vida?
- Me puxa! Me puxa! Puxa!
- Responde!
- Acho que muito. Não tudo.
- Me desculpa. Eu não vivi nada. Você já viveu tudo. Não
consigo te puxar.
- Não me deixa aqui! Não me deixa aqui! Não!
O moleque tentou uma única vez. Deixou a mão de Morialdo
escorregar, virou-se sem resquícios de hesitação e saiu da gruta. Sem peso
algum. José Patrício sabia que o velho havia ficado sem chances.
A tempestade não dava trégua na Guanabara. O papel molhou com uma lágrima.
Um comentário:
O que me fez pensar é que todos somos capazes desta escolha. Profundamente humana essas palavras.
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