quarta-feira, agosto 06, 2014

CONTO DO RIO PÉRFIDO - CAPÍTULO III


Todos ainda comentavam sobre o Cristo Redentor e sua rendição ao pé do Corcovado. A cidade inteira tomada por uma neblina praticamente serrana. Se não bastasse o contexto ninguém teria realmente deixado passar despercebido, sobretudo os cariocas, a previsão do tempo para este dia. Principalmente, uma previsão certeira. Não apenas começou a chover. Ao cair da tarde já começava o chuvisco. Lá pelas tantas da noite já alagava a cidade inteira. Poças e correntezas pelas bandas da baixada fluminense e a tomada de pessoas que antes ignoravam sua existência. Rios e riachos pelos lados do Humaitá, pelos cantos da Rua das Laranjeiras, pelos meios do Alto da Boa Vista. Dentro da gruta já se formava um grande aquário onde os únicos animais eram os dois homens que já não se entendiam.
- Esse velho aqui não deve aguentar.
E Morialdo seguia falante. Cada vez mais necessitado de um diálogo para preencher o silêncio e o medo. Cada vez mais cheio de conteúdos. Citou até Nietzsche.
- Qual seu nome, rapaz?
O velho seguia suas perguntas. Essa deveria ser a pergunta de número cento e quatorze. Isso considerando somente as sobre o nome do moleque que já não respondia e até implorava para o Deus – que ele dizia não acreditar – acabar com aquele mau agouro todo.
- Você está chateado comigo? Não te conheço.
José Patrício considerava Morialdo um companheiro de cela irritante. A paciência com o esquecimento do velho havia acabado lá pelo meio da tarde. Morialdo considerava José Patrício um novo neto a cada momento que o conhecia pela primeira vez, um possível ajudante arremessado pro seu lado, um braço forte que ele já não tinha. De um lado a suposição de esperança. De outro lado a sugestão de um peso.

Quarenta e dois anos antes José Morialdo implicava consigo mesmo. Pegava sempre um papel para espirrar ou tossir e acabava escrevendo. Não dançava o rock. Não ouvia rádios. Não ia para lanchonetes. Sequer lia clássicos. Sequer ia aos cinemas. Era apenas trabalhar e escrever. A redação do jornal o considerava fanático. Não gostava. Considerava-se lunático. Santa diferença. Os amigos diziam que pelo menos suas crônicas eram boas, muito boas. Não era possível toda vez sonhar e ter que escrever. Dormia um papel em branco, acordava assustado todo rabiscado em consciência, de ponta a ponta. Todas as noites. Todos os sonos. Não era possível. Considerava coisa de doença.
- Escrever é uma maldição.
- Uai. É troça?
- Escrever dói. A cabeça nunca fica vazia. Escrevo para despachar os pensamentos e parece que cada vez mais atolam, acumulam. Escrevo mais. Escrevo mais e mais. E mais.
- Reclama de barriga cheia. Aliás, de cabeça cheia. Acaso queria ser vazio? Pelo menos assim sustenta sua família, seus filhos e netos. Trabalha esse trem por eles então.
O amigo do sotaque de um canto de Minas estava mais que certo. Morialdo sabia e mirava as forças na família que crescia. Seus filhos ainda crianças dariam netos e bisnetos. Sonhava que pelo menos o mais velho fosse jogador ou médico. Ou médico de jogador.
- Melhor eu ir.
Despediu-se do mineiro. No meio da noite acordou assustado ao lado da esposa. Não quis acordá-la. Iluminou o papel com seu candeeiro de mesa e começou a escrever. Não sabia ainda se comédia ou tragédia. Era no Rio de Janeiro de mais adiante.

Muitos moradores das zonas sul, norte e centro perpetuavam a estadia em hotéis e motéis da Baixada Fluminense. Chovia mais pra perto do mar que lá pra perto do pedágio da Dutra. A ironia era as empregadas hospedarem suas patroas. Com o tempo até poderiam usar as patroas de empregadas e as empregadas de patroas. Assim como os pedreiros com seus patrões, os motoristas com seus chefes e as secretárias com suas gerentes. A Baixada é a nova Zona Sul e a Zona Sul é a velha Baixada. Nesse quesito o velho e o novo fogem dos seus sentidos. O velho e o novo. O antigo e o contemporâneo. Morialdo e José Patrício.
- Quer saber de uma coisa? Eu detesto velhos. Todos os velhos. Inclusive você. No ônibus cheio tenho que levantar pra dar lugar pra velho. Vou ao banco e minha fila demora muito porque tem atendimento especial pra velho. Vou ao supermercado e acontece a mesma coisa. Velhos são problemas. Prefiro morrer cedo a ficar velho. Que você não aguente mesmo.
Uma dos lados da gruta arrebentou com a força da água. Sobravam alguns metros ainda sem estarem submersos. Ambos em cima de uma rocha de uns cinco metros de superfície. O nível da água subia com considerável velocidade. Para frente e para os lados um lago escuro onde horas antes só havia gruta. Para trás uma parede por onde escorria água.
- Faz alguma coisa, velho.
- Se está escorrendo água por essa parede imagino que exista um buraco. Uma entrada de água. Uma saída pra nós.
Com a cabeça fez que concordou com o senhor. Certamente a contragosto. A parede cedeu lentamente e ofereceu uma saída com uma correnteza mais forte. Um buraco de um metro de diâmetro a cerca de cinco do nível onde estava. Uma correnteza cada vez mais forte. Folhas, galhos e muita terra também entravam na gruta por este local.
O combinado foi o moleque subir nas costas do velho e, estando lá em cima, ajudar a puxar o velho para fora. O nível da água já cobria até a metade do corpo deles e subia cada vez mais rapidamente. O velho agachou levemente pressionando as costas contra a rocha abaixo da pequena cratera aberta pra saída. José Patrício subiu pisando sobre o joelho e depois no ombro de Morialdo. Esticou o que pôde e não conseguiu alcançar um modo de subir ainda mais. O nível da água estava quase no pescoço do velho.
Mais um pouco e, enfim, conseguiu agarrar os dedos em um galho sustentado por algo do lado de fora. Subiu um pouco. O velho já estava com a água acima da cabeça. Insistia em pôr o rosto mais para fora da água. Pedia ajuda. Implorava para que José Patrício o puxasse. Passava por sua cabeça que não conseguiria se salvar se insistisse em puxar o velho.
- Velho?
- Me ajuda.
- Acha que já viveu de tudo nessa vida?
- Me puxa! Me puxa! Puxa!
- Responde!
- Acho que muito. Não tudo.
- Me desculpa. Eu não vivi nada. Você já viveu tudo. Não consigo te puxar.
- Não me deixa aqui! Não me deixa aqui! Não!
O moleque tentou uma única vez. Deixou a mão de Morialdo escorregar, virou-se sem resquícios de hesitação e saiu da gruta. Sem peso algum. José Patrício sabia que o velho havia ficado sem chances.


A tempestade não dava trégua na Guanabara. O papel molhou com uma lágrima.

Um comentário:

Poeta da Colina disse...

O que me fez pensar é que todos somos capazes desta escolha. Profundamente humana essas palavras.