domingo, dezembro 26, 2010

Rodolfo deixou de ser homem

Quase três da manhã e Rodolfo empurrava o carro garagem acima. Não queria fazer barulho. Não mais do que a cabeça fazia. Entrou em casa sorrateiro. Foi ao quarto dos filhos que dormiam em paz. Uma paz invejável. As crianças são invejáveis. Só não mais que os jovens. Parecia que havia música e tudo. Atravessou o corredor com a cera verde inalando aquele aroma de novo, sinal de faxina recente. Entrou no próprio quarto e viu a esposa seminua, linda com o babydoll rosa claro. Caiu em choro silencioso. E os pensamentos perfurando a cabeça feito facas afiadas. Aos poucos o choro virou grito. E começou a falar sozinho. Bradava pra si mesmo como ele era babaca, prepotente, fracassado e infiel. "Viu que filhos maravilhosos você tem? Olha aí que esposa linda e especial você tem. Vai continuar com essa vida? Vai continuar traindo? Essa menina que você deixou em Mesquita vale tanto como essa mulher deitada na cama te esperando? Uma mãe dedicada, fiel. Viu o que você faz?" - dizia Rodolfo.
A chuva fina fazia alguns sons distantes do lado de fora. Misturava a agua do céu com a água dos olhos. Sentou no chão e meteu, literamente, os pés pelas mãos. A luz acendeu. A voz embargada e pausada falava sobre decepção. A esposa não estava dormindo e ouviu tudo. Pediu pra que ele contasse tudo com os detalhes. Perguntava quando foi cada mulher, de onde eram e ligava com as desculpas dadas como futebol às terças-feiras, sinuca às quintas e hora-extra às segundas. Ela escutou tudo. Foi posto para fora da casa e da vida. Daí em diante viu a esposa com outro homem, possivelmente melhor que ele. Deixou de trabalhar algumas vezes. Foi demitido. A carreira enfraqueceu. Diminiu de vida. Envolveu-se com mulheres e mulheres. Casou-se mais três vezes e praticava os mesmos erros. Se era fiel, era péssimo homem. Impaciente, turrão, ciumento. Se não, ausente, crítico demais, machista. Não acharia a esposa em nenhuma delas. E não achou.
A vida de Nelson Rodrigues era interessante por escrito. A face mais suja do homem e da família mostrada por Nelson faz sucesso na literatura, na televisão. Rodolfo escrevia passagens da sua vida para ver se o peso diminuía. O peso não diminuiu. Nao foi sucesso algum e, anônimo até pra si mesmo, deixou de ser conquistador, trabalhdor, pai e homem. Deixou, senhores, de ser homem.

Um comentário:

Bia disse...

Ótimo texto esse!

Beijo.